"Peter McIntosh (1) foi talvez dos primeiros a equacionar os motivos da existência do espectáculo desportivo ao afirmar que “não há nada de novo no facto de competidores, treinadores, promotores e aqueles que prestam serviços auxiliares, ganharem dinheiro no desporto. Com raras excepções, o dinheiro ganho vem, em última instância, do espectador.” Mas esta era uma análise de 1963, completamente diferente da realidade actual. Fazendo uma retrospectiva histórica, este autor diz-nos que foi por volta de 1880 que várias modalidades desportivas passaram a poder “lucrar com as entradas do público urbano” e que as mesmas, inclusivamente o futebol e o críquete, tornaram-se “indústrias e se juntaram aos desportos já comercializados, se não industrializados, tais como a corrida de cavalos e o boxe.”
Reservemos para um pouco mais à frente o facto de McIntosh referir que quando William MacGregor fundou a Football League em 1888 o objectivo deste era poder proporcionar às pessoas um entretenimento regular semelhante ao proporcionado pelo teatro e que à data da sua obra, na Inglaterra o críquete e o futebol eram tanto desportos como indústrias de entretenimento e floresciam, assim como o facto de logo no ano seguinte Georges Magnane (2) ter feito uma destrinça entre estes dois espectáculos e os seus públicos: enquanto o teatro, e mais ainda o cinema, isolavam o espectador, o espectáculo desportivo incidia principalmente no ambiente colectivo.
E é preciso esperarmos vinte e três anos para aparecerem duas obras abordando o tema em questão: «The Quest for Excitement» (3) de Norbert Elias e Eric Dunning e «Sports Spectators» de Allen Guttmann (4).
Elias e Dunning colocam a génese do desporto moderno no século XVIII, na caça à raposa típica da Inglaterra na época vitoriana. Se por um lado era proibido aos caçadores caçar outros animais, não havendo contrapartidas para eles, por outro lado era proibido aos caçadores matar a raposa, pelo que o único objectivo desta actividade era o prazer obtido pela participação na caçada. “Talvez a sua característica principal fosse a tensão-excitação de um combate simulado que envolvia esforço físico e o divertimento que este oferecia aos seres humanos como participantes ou espectadores.”
Para Elias a passagem dos passatempos a desportos é um exemplo do avanço da civilização, avanço esse que progride através de um «processo» não planeado orientado pela estrutura social das configurações mas que é simultaneamente transformado por elas e em parte provém de um aumento da pressão sobre as pessoas para exercerem um autocontrolo próprio. Quando esse autocontrolo é inexistente por «moto próprio» a sociedade constrói as suas próprias regras. Na maioria dos confrontos desportivos as regras existem para manter essas práticas sob controlo. Elias fala-nos em confrontos altamente regulamentados, exigindo esforços físicos e competência técnica, caracterizados na sua forma de espectáculo como «desporto» e refere que “o termo desporto nunca esteve confinado apenas ao participante isolado: inclui sempre confrontos realizados para satisfação dos espectadores, e o esforço físico principal tanto podia ser dos animais como dos seres humanos.”
Elias também separa o comportamento dos públicos do teatro e do desporto – neste caso os espectadores procuram alcançar uma excitação-tensão controlada. “Pode afirmar-se (…) que o futebol, como outras modalidades de desportos de lazer, se apoia no equilíbrio precário entre o enfado e a violência. O drama de um bom jogo de futebol, segundo a forma através da qual se manifesta, possui qualquer coisa de comum com uma boa peça teatral. Aí também é construída durante algum tempo uma agradável tensão mimética, talvez a excitação, orientada para o clímax e, deste modo, para a resolução da tensão. Porém, uma peça teatral é, em muitos casos, o resultado do trabalho delineado por uma determinada pessoa, enquanto muitas formas de desporto atingiram a maturidade no decurso de um desenvolvimento social não planeado.” Aqui se nota uma diferença em relação à opinião de McIntosh acima apresentada e mais coincidente com a de Magnane, também supra.
Ainda segundo Elias, “dentro de certos limites, um tipo de realização desportiva pode conservar as suas funções como ocupação de lazer: quando assume a qualidade de desporto espectáculo. Considerado nesta perspectiva, o desporto pode resultar numa agradável excitação mimética, que é susceptível de contrabalançar as tensões, normalmente desagradáveis, das pressões derivadas do stress inerente às sociedades, proporcionando uma forma de restauração de energias.”
Assim, para este sociólogo, o espetáculo desportivo surge para controlar comportamentos (poderemos falar de um superego social?) e apresenta até a possibilidade de catarse – “a peça fulcral da configuração de um grupo envolvido no desporto é, sempre, a simulação de um confronto, com as tensões por ela produzidas controladas, e, no final, com a catarse, a libertação de tensão.”
Guttmann (4) numa perspectiva mais histórica revela-nos que no tempo dos gladiadores, na época romana, a maioria dos espectadores pagavam os seus lugares enquanto os mais pobres, os plebeus, tinham bilhetes grátis (por aqui se vê que já naquela altura esta seria uma forma ardilosa de se garantir a enchente do Coliseu). E considera que os jogos de gladiadores “eram verdeiros desportos, no sentido estrito apenas para aqueles que, provavelmente uma minoria, se ofereciam, aqueles que eram atraídos pelo risco envolvido, pelo puro amor ao combate mortal.” Os que tinham de combater sob coacção, os escravos, para Guttmann já não entram nesta categoria…
E a grande questão que este autor nos coloca, situando-a no seu tempo, é a seguinte: “Será que John McEnroe e Martina Navratilova ainda jogam tanto pelo amor ao jogo como por recompensas pecuniárias?”"
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