"Estádio da Luz. Benfica-Aves. Tarde de domingo (na minha memória, o futebol só tem dois dias, o domingo à tarde e a quarta-feira europeia, à noite). Minuto 34. Pizzi serve João Félix e este, com toda a calma e classe dos seus dezoito anos, atira para a baliza, a “gorda”, a preferida de jogadores e adeptos. Estes saltam de alegria. Festejam o primeiro golo porque o primeiro golo em casa contra uma equipa de José Mota vale quase sempre três pontos. Os aplausos são, claro está, para o miúdo, o “mágico” Félix, como dizem os comentadores na televisão. Mas os adeptos aplaudem mais do que o talento e eficácia de um puto de aparelho ortodôntico. Aplaudem uma ideia. Aplaudem o futuro.
O que o Benfica tem de mais português, mais do que a fixação nas glórias passadas, é a espera sebastiânica e prolongada por esse Messias, vindo das nebulosas camadas jovens, que chegue para guindar o clube ao lugar que, em tempos remotos, já foi seu. Essa espera tem a sombra de se saber que, nos dias de hoje, um talento capaz de, por si só, arrastar uma equipa para a glória dificilmente permanece no clube o tempo suficiente para levar a cabo a tarefa. Por isso, o aplauso efusivo a Félix é mais pungente porque é feito de esperança e de saudade antecipada, da certeza de que daqui a dois ou três anos, se tanto, estará a brilhar longe, noutros palcos, com outra camisola. De certa forma, os benfiquistas começaram ontem a despedir-se de João Félix.
Os adeptos de futebol, não só os do Benfica, são movidos pela crença, não tão irracional como possa parecer de início, que este desporto colectivo pode ser transformado pela força de um indivíduo. Se é verdade que o Barça tem uma filosofia não é menos verdade que essa filosofia tem o nome de um homem, Johan Cruyff, e que mesmo a filosofia colectiva por excelência precisou da contribuição do que é por muitos considerado o melhor jogador de sempre para se afirmar como filosofia vencedora, dominadora para lá de qualquer dúvida, dominadora de uma forma que nunca se viu no futebol e dificilmente se voltará a ver. Sem esquecer o brilho individual de estrelas como Romário ou Stoitchkov na outra constelação de talentos formada pela mão do próprio Cruyff que foi o “Dream Team”.
Para os benfiquistas, a esperança não é que o Seixal traga um novo período de domínio, mas que ofereça aos adeptos o “Escolhido”, aquele que sozinho há de levar o clube de novo aos píncaros do futebol. Hoje é motivo de risota, mas quando Mantorras teve um início de época prometedor, esse foi o momento em que o adepto do Benfica teve um vislumbre da glória inalcançável no mundo da TV a cores. O que vale um hat-trick num sábado à tarde no estádio da Luz contra o Vitória de Setúbal (no estádio da Luz, um sábado à tarde como aquele 25 de Agosto de 2001 é domingo, não se esqueçam)? A promessa de uma quimera. Esqueçam os presidentes. O benfiquista não é de pôr a vida nas mãos de presidentes, nem sequer de treinadores. O Benfica é uma questão de jogadores e quando eles são como Félix, criados em casa, a mistura de sebastianismo com a megalomania benfiquista resulta numa euforia de que os adversários gostam de troçar, mas que para o benfiquista é a reafirmação da crença que o salvador não será encontrado ao fim de uma noite eleitoral, mas provavelmente a meio de um jogo contra o Aves no estádio da Luz. Num domingo. Ou numa quarta-feira.
Estádio da Luz. Benfica-Bayern Munique. Quarta-feira europeia. Ao minuto 54, Renato Sanches acelera no meio-campo numa daquelas arrancadas explosivas sobre as quais fundou o seu breve reinado na Luz e, segundos depois, aparece na grande área a finalizar. O estádio levanta-se para o aplaudir, mas não é Renato, jogador do colosso alemão, que os adeptos aplaudem. É uma ideia, uma crença tão forte que os benfiquistas não se importam de ser as vítimas sacrificiais se isso servir para provar a verdade da sua fé. A fé em Renato. A fé em Bernardo. A fé em Félix. A fé que um dia Ele virá, tranquilo e infalível como Bruce Lee. Virá que eu vi."
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