"Para enunciar as lições que o Mundial de Futebol, que há pouco findou, me trouxe, começo por Habermas, tentando, com ele, criticar o positivismo que, num facto ou num acontecimento, não descobre valores; criticar o conhecimento científico que se julga “politicamente neutro”; criticar, por fim, as ciências que nos dizem, com vocação contemplativa, que reflectem fielmente a realidade.
No celebérrimo A Estrutura das Revoluções Científicas, Thomas Kuhn sublinha que “uma revolução científica leva inevitavelmente ao deslocamento dos principais problemas que se colocam à investigação científica” e que os especialistas detestam mudar de paradigma, chegando mesmo a ser intolerantes e grosseiros, em relação àqueles que inventam novos paradigmas. Deste breve (brevíssimo) enunciar de tópicos do pensamento de Habermas e Thomas Kuhn, permito-me eu deduzir que o futebol não pode pôr-se à margem do contexto sócio-político, de que é simultaneamente criador e produto. Nem desconhecer o paradigma que explica as metodologias que se utilizam nos treinos e nas competições. Foi de todas as equipas a que mais me aproximava do sentimento estético. É verdade: o “onze”, onde jogavam o Alisson, o Fagner, o Thiago Silva, o Miranda e o Marcelo; o Paulinho, o Renato Augusto e o Fernandinho; o Roberto Firmino, o Coutinho e o Neymar (e outros mais ainda) – aquela selecção nacional brasileira, com o maravilhoso esplendor do seu futebol, surgia-me, filha de Apolo e Diónisos, como uma autêntica expressão da “beleza clássica”, como um modelo de sublimidade estética. Só que o futebol de alta competição não é circo e jogar num Mundial de Futebol, como se joga na praia de Copacabana, é sinal certo de derrota e de sussurro incessante de tristeza da “torcida”. Escreveu o Rogério Azevedo, n’A Bola (2018/7/7): “O futebolzinho de pé para pé caiu aos pés da objectividade”. Eu sei que poucas vezes assisti a uma exibição tão perfeita de um guarda-redes, como a do Thibaut Courtois, da selecção nacional belga. Tive, por vezes, a sensação, por uma infantil e estranha ilusão. que ele, ele só, impedira o Brasil de chegar à vitória. Mas há mais do que beleza nas grandes equipas do futebol hodierno.
Não esqueço o que aprendi com o filósofo brasileiro José Arthur Giannotti quando ambos, em 1987, em Florianópolis, fomos os conferencistas de um colóquio, aberto ao público universitário da cidade: “entre os séculos XV e XIX, entre o Renascimento e o Impressionismo, altera-se a ideia de um objecto sempre igual a si mesmo (…). Surge em seu lugar a ideia de um objecto que se modifica diante do nosso olhar, que se revela a gestalts, a apreensões diferentes: cada golpe de percepção faz aparecer uma coisa diferente. Compare-se a ideia de representação, presente em obras cubistas de Picasso (1881-1973), com a ideia de representação, presente nas pinturas renascentistas, por exemplo Michelangelo (1475-1564) ou Leonardo Da Vinci (1452-1519” (José Auri Cunha, Iniciação à Investigação Filosófica, Alínea Editora, Campinas, 2000, pp. 400/401).
Tudo é História, tudo é processo, por outras palavras: tudo se transforma, designadamente pela práxis humana. Por isso, o futebol (e o mundo onde desse futebol nasceu) de Ladislao Kubala, Di Stéfano, José Travassos, Pedroto, Matateu, Puskas, Eusébio, Coluna era percepcionado e praticado de modo bem diverso do futebol, hoje percepcionado e praticado. pelo Ronaldo, ou o Messi, ou o Neymar, ou o Mbappé, ou o De Bruyne. A transferência do Cristiano Ronaldo, por 117 milhões de euros, num contrato que prevê um ordenado, para este jogador, de 30 milhões anuais, ou seja, por cada hora vai auferir 3425 euros – a transferência de Cristiano Ronaldo era impensável, há 50 e 60 anos! O futebol era outro? Sem dúvida! Mas outros eram também a Europa e o Mundo. Hoje, a um jogo de futebol presidem as categorias típicas do mais férreo economicismo, ou seja, as finanças comandam a economia, sem um leve pendor que seja de crítica social. As invenções tecnológicas são muitas e muito eficientes. Mas o crescimento exponencial da ânsia do Lucro e da Corrupção é muito maior ainda…
O meu “herói” deste Mundial-2018? Fecho os olhos, para pensar e reabro-os para afirmar: Kylian Mbappé, um produto da “banlieu” de Paris. Nasceu, em 1998, em Bondy, uma cidade de 52000 habitantes, distante 12 quilómetros do centro de Paris. E onde muita coisa indispensável falta. Só o futebol (a mais importante das coisas pouco importantes) não falta. Nos vastos “cafés populares”, os pais, a suar tristeza, não ocultam a ideia de que está no futebol (e não na escola republicana) a réstia de esperança de os seus filhos poderem ser “alguém” e ajudarem a família a sair de uma vida próxima da angústia, próxima da revolta… perante a serena indiferença de alguns políticos, defensores da “democracia”, ou seja, de um regime político formal e não mais do que formal. Os melhores jogadores de futebol provêm, normalmente, de famílias, alienadas pelo populismo, pela demagogia, pelo descalabro das democracias políticas que o capitalismo perverteu, quero eu dizer: famílias pobres, no corpo e na alma. Na Europa, o “fenómeno” repete-se. “A recente vitória do europeísta Macron contra a populista Marine Le Pen, por bem-vinda que seja, não vai resolver a crise política da Europa, se bem que, para muitos, ele represente ou encarne mesmo, um novo ânimo da utopia europeia. O populismo que avança manifesta, precisamente, as falhas e lacunas dessa utopia, desenhando em negativo o seu avesso distópico, ao propor, perversamente, uma outra cena idílica, da Pátria reencontrada, da identidade recuperada, da Ordem restaurada – a partir do ódio e da destruição do inimigo” (José Gil, “Europa: utopia ou distopia?”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 4 a 17 de Julho de 2018). Mundo em crise: futebol em crise, inevitavelmente. Quando eu venho dizendo, há alguns anos já, que o desporto mais publicitado e propagandeado reproduz e multiplica as taras do capitalismo que nos governa, quero dizer isto mesmo.
Não digo que não se consiga lobrigar, no futebol, minúsculos oásis, intocados pela erosão dos mais altos valores humanos e desportivos e sem as tempestades do facciosismo clubístico. Não digo que, no meio das serpentes fosfóreas de luzes dos grandes espectáculos desportivos, não se movimentem pessoas de sinceridade irrepreensível, no acatamento de uma ética que não se confunde com a razão eurocêntrica, machista, politicamente dominadora, culturalmente manipuladora e religiosamente fetichista. Mas são raros, tão raros que só podem contemplar-se com as mais expressivas e carinhosas manifestações de espanto. “Mbappé, afirma o El País, de 2018/7/2, nasce de uma família bem estruturada. Será o herdeiro natural de Cristiano e de Messi, já que o Neymar tem um modo diferente de ver a vida e de comportar-se, como pessoa”. E continua o mesmo conceituado analista do futebol internacional: “Kylian é um jovem que, num ano só, de preparação mais intensa, foi imediatamente convidado a ingressar na elite do futebol. Fez depois a pré-temporada, com a primeira equipa do Mónaco e realizou-a com um arrojo e competência tais que o consideraram, em poucos dias, imprescindível”.
Agora, no PSG, já tem lugar assegurado, na primeira equipa. Griezmann, seu colega na equipa nacional gaulesa, não esconde vibrantes palavras de louvor à velocidade de Mbappé e à sua conduta ética: “Tem a maturidade, a precocidade e a humildade de Pelé”. No que à velocidade diz respeito, a sua potência física permite-lhe correr a 37,4 km./h. Salah, avançado do Liverpool, que se julgava o mais rápido jogador da UEFA, não ultrapassa os 33,8 km. por hora!... Entretanto, o nosso Cristiano Ronaldo, num estado de inquietação permanente, de contínua ebulição, não cessa de proclamar urbi et orbi: “eu sou diferente de todos os outros”. E é – é ainda o melhor jogador de futebol do mundo. “Ainda” disse eu. Ou seja: um dia, deixará de ser! É conhecido o texto do poeta inglês, Alexander Pope (1688-1744): “A noite encobria a natureza e as suas leis. Então, Deus disse: Faça-se Newton! E a luz voltou a nascer!”. Tudo é tempo e, como tempo, somos todos iguais."
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