"Moscovo - Tenho a minha conta de aeroportos e, como os últimos Mundiais têm sido em países encorpados, as esperas foram maiores do que serão, certamente, no Qatar daqui a quatro anos, dê-se o caso de até lá me manter em funções pelo menos básicas. Ainda há pouco tempo fiquei preso mais de 14 horas em Teerão por causa da neve, que subiu até à zona das ancas de um homem de estatura meã, e os motivos de entretenimento não eram muitos. É em momentos como esses que tendo a observar e descubro que talvez não tenha sido totalmente generoso com a raça humana, que me inspira tão pouca curiosidade que não faço ideia se quem veio a meu lado, no aviãozinho minúsculo que me trouxe de Penza até Moscovo/Vnukovo (um aeroporto mais maneiro que o de Sheremetievo), tinha barba ou bigode ou suíças ou cavanhaque e, tendo-os, se era um cavalheiro ou uma senhora com pilosidade abastada.
Pacientemente, espero.
Duas horas já passaram, faltam mais três. Pelo que vou espreitando no ecrã, tal como em 1942, também não será desta que a Alemanha chegará a Moscovo.
Se aqui estivesse o grande Torga diria que a meu lado estão sentados homens distraídos da sua condição de almas penadas, mas o Torga também não era propriamente dado a elogios à espécie humana, da qual, muito provavelmente, nem fazia parte, para escrever como escrevia. Papagaiam em inglês. Pelo que falam e nada dizem, depreende-se o muito que sabem e não exibem, e daí a modéstia que lhes perpassa pelos rostos.
Se me virar para a esquerda, este joguinho inofensivo torna-se entusiasmante. Há um senhor idoso que tem problemas com a distinção das raças. Embirra com outro, ao que parece por não serem iguais, embora me dê a sensação de que as cores de ambos são absolutamente normais. Não concordo minimamente com o que diz, mas sinto-me obrigado a defender até à morte o seu direito a ser um perfeito asno. Já Guimarães Rosa teimava que pãos ou pães é uma questão de opiniões.
Outro, de feições orientais, exibe a sua acreditação de adepto, coisa que a organização deste Mundial impôs e faz com que perca a conta da gente que se cruza comigo com o nome dependurado ao pescoço, em caracteres ocidentais e cirílicos, para excluir todas as dúvidas. Ao ver-me olhar para ele, faz um pequeno aceno com a cabeça, próprio dessa educação depurada que transforma todos os japoneses em cavalheiros, mesmo quando são proprietários de cérebros caliginosos, fechados e impenetráveis. Ao longe, ainda vejo bem. Tomo assim conhecimento com Mr. Lawrence, que de repente já não me parece nada japonês, mas evito, como é óbvio, cair na esparrela de lhe desejar “Merry Christmas”. Não há que confiar nas primeiras impressões, por mais impressivas que sejam.
Passa uma brasileira de calções curtíssimos cor-de-rosa (não, não levem isto para uma questão glandular, porque é mesmo uma moda) e tenho a tentação de cantarolar: “Se um outro cabeludo aparecer na sua rua/ Você vai lembrar de mim...”
Mas ela esqueceu-me e vai perdida no meio das outras garotas de Ipanema. Deve ser russa, afinal.
À medida que observo, sem saber ao certo para onde me virar, como o burro de Buridan, escuto esta babel de dialectos e de sotaques e recordo-me da teoria universal de Carlos V, da Lorena: “O francês é a língua que se usa para falar com um amigo; o italiano utiliza-se para falar com a amada; o holandês serve para nos dirigirmos aos empregados, e o alemão para darmos ordens aos soldados; o espanhol é a língua dos reis; para suplicar a Deus uso o latim; para discutir com o diabo prefiro o húngaro.”
O português pode ser uma língua dos diabos, mas não merece o esquecimento. É em português que falam os poetas. Em que outra língua se escreveria uma coisa assim? “Toulouse-Lautrec/ Foi um grande pintor/ Mas só depois de morto é que/ Lhe deram o devido valor.” Em nenhuma."
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