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sábado, 26 de maio de 2018

Jack Johnson, o homem que irritou os brancos porque tinha aquilo que os brancos acreditavam ser um direito só deles

"Foram precisos 105 anos para que Jack Johnson, o primeiro pugilista negro a sagrar-se campeão mundial de pesos pesados, fosse perdoado por um crime pelo qual foi injustamente perseguido e condenado. O crime de Johnson, na verdade, era ser melhor que os brancos dentro dos ringues e gostar de uma vida de fausto, que então, no início do século 20, estava barrada aos negros. Mas Johnson também era um homem com defeitos e é por isso que a decisão de Trump não é exactamente consensual

Sobre a vida de Jack Johnson haverá tantas verdades quanto mitos. Em sentido lato, Johnson foi o homem que em 1908 se tornou no primeiro pugilista negro campeão mundial de pesos pesados. Mas Johnson foi muito mais do que isso: ao longo de 68 anos de vida cheia foi músico de jazz, actor, estivador, toureiro, agente secreto na I Guerra Mundial, pedreiro-livre, empresário da noite, inventor, amante de Mata Hari e até comparsa de Rasputin em noites loucas regadas a shots de vodka em plena Rússia.
Algumas destas coisas serão verdade, outras nem por isso. Certo é que no seu tempo Jack Johnson, que na quinta-feira foi perdoado por Donald Trump por um crime pelo qual foi considerado culpado há 105 anos, foi um homem à parte, quanto mais não seja por esta simples razão: Jack Johnson irritou os brancos porque Jack Johnson tinha aquilo que os brancos acreditavam ser um direito só deles. Falamos de talento, sucesso, mulheres, carros potentes, uma vida boémia, sem amarras, sem olhar a raças ou origem. Jack Johnson pagou caro a sua aversão às regras da moral e bons costumes do início do século 20, o ultraje que era passear-se com mulheres brancas, a humilhação que era deitar brancos ao tapete, ficando-lhes com a honra e com os títulos.
Nada disso era crime, mas o preconceito subverte qualquer conjunto de leis. Em Outubro de 1912, Jack Johnson foi preso por violar o Mann Act, que proibia o “transporte de mulheres entre estados para propósitos imorais”. Na verdade, quem ia no carro com Johnson era Lucille Cameron, com quem o pugilista se casaria ainda esse ano. O problema é que Lucille era branca, tal como a primeira mulher de Johnson, Etta Duryea. E tal como seria a terceira mulher, Irene Pineau, com quem esteve casado até morrer.
Cameron não cooperou com a mentira da justiça, que queria que Johnson servisse de exemplo para outros negros numa profundamente racista América, onde as palavras “miscigenação” e “linchamento” andavam normalmente de mão dada, ainda para mais no sul. O caso caiu, mas menos de um mês depois Johnson voltou a ser preso, acusado do mesmo “crime”. Desta vez, Belle Schreiber, uma alegada prostituta com quem Johnson teria tido uma relação entre 1909 e 1910, testemunhou contra ele: em Junho de 1913, Johnson acabaria condenado a um ano e um dia de prisão por um tribunal de júri constituído apenas por homens brancos.
Foi precisamente esta condenação por “deboche”, como se dizia à época, que Donald Trump perdoou na quinta-feira, assinando o documento que concede o perdão total a Johnson 105 anos depois de uma decisão na qual a raça foi um factor determinante. Ao lado de Trump estava o antigo pugilista britânico Lennox Lewis e Sylvester Stallone, este último o grande responsável por levar a história de Johnson ao presidente dos EUA.

Um homem que não conhecia as diferenças
Filho de antigos escravos, Jack Johnson nasceu em Galveston, no estado do Texas, no último dia de Março de 1878. À época, Galveston era uma espécie de oásis para os negros do sul: naquela terra, todos eram pobres por igual, fossem brancos ou negros e por isso toda a gente se dava com toda a gente. Na biografia de Johnson (“The Unforgivable Blackness: The Rise and Fall of Jack Johnson”, escrita por Geoffrey C. Ward), o pugilista mostra em poucas palavras o que foi crescer sem conhecer diferenças. “Enquanto crescia, os miúdos brancos eram meus amigos e companheiros. Eu comia com eles, brincava com eles, dormia nas suas casas. As mães deles davam-me bolachas e eu comia à mesa com eles. Nunca ninguém me disse ali que o homem branco era superior a mim”.
Em Galveston, Jack foi feliz, mas Galveston não preparou Johnson para o que iria encontrar fora da sua cidade.
Talvez o primeiro embate com a realidade tenha acontecido quando tentou desafiar James J. Jeffries, então dono do título de campeão mundial de pesos pesados. Johnson vinha de defender 17 vezes o segregador título de World Colored Heavyweight Champion e Jeffries, tal como outros antigos campeões, recusou vez atrás de vez discutir o cinturão com um negro.
Mas estava nas mãos de Johnson mudar a história e finalmente, em 1908, subiu a um ringue para discutir o título mundial de pesos pesados. Foi contra Tommy Burns, um canadiano que aguentou 14 assaltos até a polícia de Sydney ser obrigada a parar o combate - ninguém queria ver um branco ser chacinado por um negro, ainda para mais frente a mais de 20 mil pessoas.
Johnson, um negro, era então campeão do mundo. O primeiro negro. A comoção entre os brancos foi tal que começaram as pressões para que James J. Jeffries deixasse a pacatez da quinta onde se refugiara depois de abandonar o boxe e desafiasse Johnson, anos depois de ter recusado combater frente a um negro. Tal aconteceu em 1910, no primeiro “Combate do Século”. Reza a lenda que foi preciso saco de 120 mil dólares (que hoje equivale a qualquer coisa como 2,7 milhões de euros) para convencer Jeffries, que se viu envolto numa expectativa tal que ganhou a alcunha de “Great White Hope”.
Estávamos em Julho e em Reno, no Nevada, Jack Johnson foi tão superior à grande esperança branca que ao 15.º assalto as câmeras foram desligadas para que não existissem registos de mais uma humilhante derrota de um branco às mãos de um negro. Mas o que se seguiu foi bem mais sangrento: a fúria branca pelo despeito da derrota foi tal que motins raciais irromperam em mais de 50 cidades norte-americanas, provocando a morte a pelo menos 25 pessoas. Desses, 23 eram negros.

A fuga necessária
Jack Johnson tinha dinheiro e sucesso e não tinha pejo em mostrá-los. E continuou a bater sem misericórdia qualquer pugilista branco que o desafiasse, mesmo perante ambientes hostis e arbitragens tendenciosas. E se dentro do ringue era impossível pará-lo, teve de ser a justiça a fazer o trabalho. Depois de condenado a um ano e um dia de prisão, Johnson fugiu, primeiro para o Canadá e depois um pouco para todo o lado: durante sete anos viveu o exílio forçado pela Europa, América do Sul e México, movendo-se faustosamente entre a realeza social de cada paragem. Era uma super-estrela, podia fazê-lo.
Pelo meio, defendeu o título mundial em Paris por duas ocasiões, perdendo o título apenas em 1915, para Jess Willard, em Havana, Cuba.
Em 1920, decidiu terminar a fuga. Entregou-se às autoridades norte-americanas na fronteira com o México e foi colocado na cadeia de Leavenworth. Passou praticamente um ano na prisão, onde inclusivamente fez alguns combates profissionais.
A partir daí a carreira de Johnson entrou em declínio, ainda que tenha combatido profissionalmente até 1938, ou seja, praticamente até aos 60 anos. Viria a morrer de acidente de automóvel aos 68 anos, após sair furiosamente de um restaurante que havia recusado servi-lo por ser negro.
Galveston não o tinha preparado para isso.

Um exemplo, ou nem por isso
No seu estilo cáustico mas não poucas vezes mal-informado, Donald Trump tomou para si a glória da decisão de, 105 longos anos depois, perdoar Jack Johnson de um veredicto marcadamente racista, lançando desde logo dardos aos antecessores “que nada fizeram”.
A crítica era, na verdade, dirigida apenas e somente a Barack Obama, que teve o dossier do perdão total a Johnson na mão, optando por nada fazer. As razões para o primeiro presidente negro optar por não perdoar o primeiro negro campeão mundial de pesos pesados não são públicas, mas a verdade é que a figura de Jack Johnson, apesar de mítica e carismática, nunca foi exactamente consensual, até para os próprios negros.
Isto porque Johnson não aproveitou o seu sucesso dentro dos ringues para batalhar pelos direitos dos negros, ao contrário do que fez, por exemplo, Muhammed Ali. Na verdade, Johnson sempre se preocupou mais consigo próprio e quando enfrentou os brancos foi mais para “se ajudar a si próprio do que os afro-americanos como um todo”, escreveu Allen Barra num texto para o “The Guardian” onde desvalorizou a acção de Trump.
Depois de se tornar no primeiro negro a quebrar a barreira da cor nos pesos pesados, Johnson recusou reiteradamente desafios de outros atletas negros pelo título. A razão? Combater e vencer atletas brancos mais fracos dava-lhe muito mais dinheiro e prize moneys bem mais apetitosos. Com isso, Johnson travou a ascensão de outros atletas negros, a mesma que ele havia ganho anos antes.
O comportamento de Johnson com mulheres estaria também longe de ser exemplar. Etta Duryea, a sua primeira mulher, terá sofrido muitas vezes a fúria de Johnson e as visitas ao hospital eram regulares. Duryea suicidou-se em 1912, à terceira tentativa, depois de anos de abusos e infidelidades do marido.
Jesse Washington, num artigo para o site The Undefeated, plataforma do universo ESPN dedicado às questões raciais, defendeu que é muito mais fácil para Trump perdoar Johnson do que teria sido para Obama. O que para Trump é apenas uma pequena acção simbólica perante a injustiça racial que ainda grassa nos Estados Unidos, para Obama seria visto quase como “perdoar Tupac Shakur”.
“Acredito que Johnson merece que o seu cadastro esteja limpo, mas Obama estava mais preocupado em perdoar as vítimas ainda vivas das políticas de encarceramento em massa”, sublinhou ainda Jesse Washington.
Com as suas qualidades e defeitos, o certo é que Jack Johnson foi a primeira super-estrela negra do desporto. E agora está, finalmente, livre."

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