"Sabe-se muito sobre a carreira de Guttmann como técnico. Sabem-se algumas coisas sobre a forma como seguiu a tradição de família e teve a sua própria escola de bailado, em Nova Iorque. Mas já não se sabe assim muito sobre a sua extraordinária carreira como jogador. Merece uma páginas.
Na semana passada falei de Béla Guttmann. Pois insisto: nesta semana falarei de Béla Guttmann.
Guttmann foi um homem providencial na história do Benfica, embora eu não goste muito de homens providenciais.
Houve entre ambos uma espécie de encontro cósmico: um treinador no auge das suas capacidades e um conjunto de jogadores de categoria única.
Resultado prático: duas Taças dos Campeões Europeus.
Que Béla Guttmann foi professor de dança, seguindo as pisadas dos pais, Ábrahám e Eszter, já quase toda a gente sabe. Ele próprio, numa fase em que jogou e viveu nos Estados Unidos, quando a crise económica quase destruiu a Bolsa Americana, sentiu necessidade de abrir a sua própria escola em Nova Iorque.
Aliás, segundo os registos oficiais, Béla tirou o seu curso de instrutor de dança aos 16 anos de idade. Há quem não duvide de que as suas aptidões para o bailado terão influenciado, e muito, a sua carreia posterior no futebol, fazendo dele um médio elegante e trato finíssimo da bola.
Era aqui que eu queria chegar: a carreira de jogador de Béla Guttmann não faz parte da maioria dos canhentos que tenho lido sobre esse desporto maravilhoso inventado pelos ingleses e que o mundo inteiro aprendeu a amar profundamente.
Vejamos, por exemplo: a sua carreira como centrocampista espalhou-se entre 1917 e 1933. Jogou primeiro na sua Hungria natal, no Torekvés e no MTK Budapeste - um clube extraordinário, Magyar Testgyakorlók Kore, o Círculo dos Activistas Húngaros, o tal que perdeu a final da Taça das Taças para o Sporting, em 1964; depois na sua pátria escolhida, a Áustria, no Hakoah Viena, onde pendurou as botas; o resto decorreu nos Estados Unidos: New York Giants, New York Hakoah, Hakoah All-Stars, New York Soccer Club.
Pés artísticos!
Dizem os seus biógrafos que Guttmann atingiu o seu auge como jogador no Hakoah Viena.
Explique-se desde já que, tal como o nome indica, o Hakoah (traduzido liberalmente como o poder ou a força) era um clube fundado por sionistas austríacos representando um arauto da atitude judaica de afirmação e de rejeição de assimilação pela comunidade gentia.
Um dos seus fundadores, Robert Stricker, afirmava orgulhoso: 'Um povo que se habitua a ser insultado está perdido'.
O Hakoah foi campeão austríaco em 1925. Era o primeiro campeonato inteiramente profissionalizado da Europa, Inglaterra à parte como está bem de ver.
A sua excelência técnica foi rapidamente popularizada: Béla era um jogador de classe incomum.
E o Hakoah tornou-se uma espécie de Globe Trotter: deslocava-se por todo o mundo, somando triunfos expressivos, exibindo um futebol alegre e sedutoramente técnico. Onde quer que jogasse, multidões de judeus surgiam para o incentivar a aplaudir. Era um clube que ultrapassava fronteiras. Era um clube universal, tal com o povo que representava.
Foi o primeiro a vencer uma equipa inglesa no seu próprio terreno: 5-0 no campo do West Ham.
Foi a Praga bater o Slávia, impondo-lhe a primeira derrota caseira em dez anos.
Percorreu os Estados Unidos numa digressão que atraiu aos estádios um total de 250 mil pessoas.
Quinze anos mais tarde, 37 dos membros do Hakoah Viena seriam assasinados pelos nazis, incluindo 7 jogadores.
O clube foi dissolvido e o registo dos seus feitos soterrado sob o manto negro do racismo.
Béla Guttmann vinha do MTK Budapeste: é preciso dizer que o MTK era a equipa dos judeus da Hungria, tal com o Ferencváros era a equipa dos germânicos. Tinha absorvido os ensinamentos de um treinador chamado Jimmy Hogan, que implantou na Europa central o estilo escocês, ou seja, avançando com a bola pelo terreno trocando-a o mais possível entre os jogadores.
David Bolchover, no seu livro recentemente publicado entre nós, sublinhava a notícia de um jornal vienense: 'É escusado sublinhar que, com Guttmann, o Hakoah acaba de garantir os serviços de um jogador de primeira categoria!'
Tinha sido, durante quatro anos, o esteio da sua anterior equipa. Os seus passes eram tão certeiros, que os seus companheiros recebiam a bola exactamente no local onde a esperavam. Era um profissional de mão-cheia, cuidadoso no aspecto físico e disponível para auxiliar os seus defesas sobre o relvado. Podia ser relativamente baixo, mas tinha um temperamento corajoso e cerrava os dentes até ao último apito do árbitro. Ficou famoso um encontro entre o Hakoah e o First Viena no campeonato de 1926. Uma cena de pancadaria alastrou por entre os jogadores de ambas as equipas. Guttmann com uma das estrelas austríacas da época, Leopod Hofffmann. No final do jogo foi à procura do seu adversário e agrediu-o sem piedade. 'O homem de Viena ficou tão maltratado com o murro que levou na cara, que sangrava da boca e do nariz', surgiu a letra de imprensa.´
Bolchover recorda que Guttmann foi suspenso por vários jogos. E replicou: 'Ele estava a criticar a minha religião, e eu cuspi-lhe na cara'.
O Pezinho-de-Dança não era para brincadeiras.
Merecerá que eu volte aqui para falar dele pelo menos mais uma vez.
Para já, o ponto definitivo no fim da frase corta-me a prosa."
Afonso de Melo, in O Benfica
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