"No dia 26 de Fevereiro de 1984, os «Galos do Botaréu» receberam o Benfica num jogo único da história de Águeda. A gente era tanta que se sentava sobre as linhas laterais e ameaçava invadir o pelado do Municipal.
Quando o Recreio de Águeda jogava no velhinho Campo de São Sebastião, nas traseiras da capela, havia grandes enchentes mas o Benfica não ia a Águeda.
Os meus avós diziam: «Águeda é o Mundo!» E era.
Para nós o Mundo não tinha fronteiras. Ia para além dos campos de milho a arder ao sol, para além das lavadeiras do Sardão e dos lençóis a brilhar de branco nas areias do rio, dos ciganos do Souto do Rio e das águas do Alfusqueiro. Às vezes, quando o adro ficava curto para os jogos de futebol que tinham como baliza a porta do cemitério, corríamos no pelado do São Sebastião a imaginar «espectadores atentos nas bancadas de madeira».
Depois, o Futebol atravessou o rio. Deixou de haver bola nas traseiras da capela e passou a haver um estádio novo no Sardão, de onde as lavadeiras desapareceram de vez.
Na época de 1983/84 o Recreio de Águeda estava na I Divisão: pela primeira e única vez.
No dia 26 de Fevereiro de 1984, o Benfica visitou Águeda e nunca houve enchente igual. Estive lá e vi. E muito não vi.
Sim, porque não havia espaço para todos. O público transbordou das bancadas até às linhas laterais - os dirigentes do Benfica viriam a fazer um protesto, alegando que o campo tinha sido reduzido - encavalitava-se atrás da baliza, os guardas republicanos passeavam a cavalo procurando impedir que as pessoas saltassem para dentro do pelado.
Havia quem gritasse: «Tira o cavalo da frente!!! Quero ver a bola!»
Bem podia gritar... De nada servia. A autoridade cavalgava a passo, farda e condizer e uma certa vaidade mal escondida.
Hoje, não haveria jogo. Decretar-se-ia falta de condições de segurança. Mas eram outros tempos. Menos burocráticos. E o futebol ainda podia ser uma festa.
Nessa tarde, em Águeda, ninguém quis perder a festa.
Na estreia do Bicampeonato
Era a segunda época de Sven-Goran Eriksson como treinador do Benfica. Duas vezes campeão: sim, toda a gente se lembra, o último Bicampeonato...
A luta foi sendo renhida com o FC Porto que nessa jornada, a 19.ª, venceria o Sp. Braga por 1-0, golo de «penalty» por Jaime Pacheco. Repare-se o que escrevia Manuel Neto a propósito, no «Diário de Lisboa»: «A 'bronca' nas Antas - corriam os 20 minutos quando Sousa, de cabeça, faz um golo que o rapaz festeja exuberantemente par logo ver o feito contestado por um fiscal. Graça Oliva fica no centro da confusão mostra dois cartões e, daí a pouco, salva a pele marcando um inventado 'penalty' contra os bracarenses que deu o golo a Jaime Pacheco. Foi um escândalo esta arbitragem».
Pois é. O costume...
Em Águeda, a vida do Benfica não foi fácil no primeiro tempo. À vantagem adregada por Nené, de grande penalidade, pelos vistos indiscutida, aos 19 minutos, respondeu o Recreio com um golo de César, um brasileiro de categoria que ainda jogaria no Vitória de Setúbal - 23 minutos.
A festa continuava à beira rio, embora houvesse bem mais gente do Benfica nessa tarde no estádio do que propriamente do Águeda.
O árbitro foi Carlos Valente.
O Recreio de Águeda tinha Tibi na baliza. E Jorginho como central. Esse mesmo Jorginho que passou pelo Sporting e continua a viver em Águeda, amarrado aos encantos do Botaréu. Depois jogavam ainda Rodrigues Dias e Paulo César. O «capitão» Sá Pereira, Nogueira, o grande «Nogas» do Atlético, Belenenses e Sporting, que marcou pela selecção um golo à Espanha, nas Antas, com três túneis, um dos quais a Camacho, que foi treinador do Benfica. Havia também Orlando e Flávio, Belo e António Jorge... Enfim, uma bela equipa, mas que não deu para evitar a descida. E um adeus à I Divisão até hoje.
E que dizer desse Benfica de Eriksson? Bento; Pietra, Bastos Lopes, Oliveira e Álvaro; José Luís, Carlos Manuel, Shéu e Veloso; Nené e Dimantino. De fora ficavam Chalana, Stromberg, Manniche. E Humberto Coelho já a contas com o seu sofrimento no joelho.
Na segunda parte, para causar inveja aos plácidos e moderrentos guardas republicanos, de botas a brilhar de graxa no alto das suas cavalgaduras, a águia entrou a galope. E atropelou os «Golos do Botaréu»!
Dez minutos decorridos sobre o reatar da partida, Diamantino (que nessa época marcou 19 golos no campeonato, só menos dois do que Nené) fez o 1-2. Sobre o duro pelado do Municipal de Águeda, a história do jogo toma o seu rumo definitivo.
Nada poderá agora obstar à vitória encarnada.
O público bem que grita: «Tira daí o cavalo!!!» Quer ver os golos que faltam. Mas não são apenas os cavalos que percorrem as linhas laterais a tapar a visibilidade. São os magotes de pessoas sem assento que se acocoram junto ao campo, que saltam de vez em quando como se tivessem molas nos calcanhares, que erguem os braços e barafustam e festejam à vez segundo as cores das suas simpatias.
Aos 62 minutos, Nené resolve a questão: 1-3. Paulo César, esse rapaz duro e barbudo, tem a infelicidade de um auto-golo: 1-4.
O Benfica vinha de um frustrante empate caseiro frente ao Estoril (1-1) na jornada anterior (quem diz que a história se não repete?) e perdera Filipovic por expulsão para o jogo de Águeda. Mas tudo regressava aos eixos da caminhada para o título - uma semana mais tarde desfaria o Sp. Braga na Luz com um violento 7-0.
Mesmo depois do apito final de Carlos Valente, os cavalos não arredaram pé. Esperaram com paciência que, ordeiro, o povo regressasse a casa.
Nunca tal se viu em Águeda.
Nessa tarde de domingo, Águeda voltou a ser o Mundo!"
Afonso de Melo, in O Benfica
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