"Num país onde o apuramento deixou de ser conquista, o risco está no facilitismo instalado e numa liderança que protege nomes antes de proteger o futebol que a equipa precisa
Portugal não falhou — e só o falhar é que seria realmente notícia. Não acontece desde 1998 e dificilmente haverá incidente de tamanhas proporções tão cedo. As qualificações, face à estabilização nos primeiros lugares do ranking, são sempre fáceis. Estar no topo garante estatuto de cabeça de série e cria fosso para os rivais no apuramento, e depois os resultados na qualificação, particulares e fases finais seguram a equipa no topo. Ambos são causa e consequência de si próprios. A seguir, há ainda toda a qualidade que brota da formação — ainda que com aproveitamento diminuto nos grandes do país — e tem permitido criar grupos de trabalho cada vez mais completos e competentes.
Esta Seleção não só dificilmente falharia agora como só o facto de eventualmente necessitar da calculadora por culpa de contas complicadas seria, por si só, motivo de escárnio e eventual insulto. E o tom só poderia piorar com a necessidade de um play-off ou, por fim, com a inesperada e desgraçada eliminação. Quando Roberto Martínez atirou, de debaixo daquele esgar tecido de simpatia infinita, que há mérito por não ter sido necessária ginástica matemática, falhou no encontro com as expetativas do resto das pessoas. Mostrou um nível de exigência que já só pertence a um ou dois que ainda veem o copo meio-cheio — ou até mais do que isso —, seja por defeito profissional ou incapacidade de tirar os olhos da bola e ver três ou quatro jogadas à frente.
Mesmo que estejas tão viciado no 8 que alcançar o 80 nem por milagre o consigas imaginar, exigir tão pouco é o primeiro passo para que até isso, mais tarde ou mais cedo, deixe de ser dado adquirido. Teria de ser consequência de múltiplos fatores, é verdade, porém vejam o que se passa há várias campanhas com a Itália.
O selecionador português, que gosta de exigir respeito para si e para os jogadores nos momentos mais cinzentos, esquece-se que talvez perca esse direito quando não toma decisões pela meritocracia do momento de forma ou sequer em nome de um determinado modelo. Eu poderia admitir a troca do primeiro pelo segundo, ainda que muita gente não faça concessão igual, na demanda por maior química entre os melhores, porém Martínez aponta é para a criação do seu grupo, em que os estatutos são mais importantes do que o processo. E, com isso, assume assim um compromisso que o afasta até mesmo do jogo que quer jogar. Ainda que tenha os jogadores do seu lado, como se viu quando assombrado pelo fantasma de Mourinho e encostado à parede pela sofreguidão de Proença na mesma Liga das Nações que o aguentou até esta fase de qualificação e ao inevitável próximo Campeonato do Mundo. Um fator importante para se ter sucesso.
Já muita tinta eu próprio fiz correr sobre Cristiano Ronaldo, tanta que não tenho muito mais a dizer que não tenha já dito. Não posso afirmar que a associação ao candidato a pior presidente da história dos Estados Unidos e ao Trumpismo, me surpreenda e o mesmo digo sobre a duradoura relação com uma Arábia Saudita a querer lavar a face através do poder que o desporto, sobretudo o maior de todos eles, tem. Todos já devíamos ter percebido que a sua grandeza está circunscrita a quatro linhas e mesmo essa já possui tantas páginas na História que pouco haverá ainda a escrever. Também não me surpreende a frustração que levou ao vermelho em alguém que recebeu a braçadeira cedo demais e nunca entendeu realmente o total significado da palavra ‘exemplo’ e o sentido coletivo que esta também abrange.
Claro que o capitão luso só chegou onde chegou graças à dedicação e à ética de trabalho inegociáveis, indo além do que lhe era proposto todos os dias. Foi assim que ganhou praticamente tudo. Os muitos sacrifícios que fez compensaram. No entanto, a forma como se construiu a si próprio, para ser cada vez mais letal, sempre a apontar à Bola de Ouro, colocaram-no em contraciclo com o resto do jogo. Enquanto o futebol passou a defender e a pressionar com 11 e os goleadores foram obrigados a adaptar-se a modelos associativos, Ronaldo perdeu espaço nas maiores equipas da Europa e exilou-se num futebol mais periférico do que o da periferia do Velho Continente. Voltou a chama e a fome, e contou com a cumplicidade de Martínez para se manter na corrida a recordes individuais, porém se essa voracidade é o que garante que o seu coração de atleta continue a bater, também é o que o afasta de se eternizar pelo mérito.
Aos 40 anos, e depois de não o ter feito aos 30 ou aos 35, Ronaldo não vai mudar outra vez, a fim de transformar-se no jogador que se sacrifica em torno da equipa. Nem será capaz de contribuir com a sua parte para o todo, a pressionar ou a atacar, se lhe pedirem algo diferente. Pensa apenas em si quando corre, quando pede a bola, quando remata, esquecendo-se que se ficar onde está, se atrair rivais, mais do que um se possível, se as suas movimentações estabelecerem relações com as dos companheiros, se não quiser ser o ponto final de cada frase, libertando quem joga ao seu lado, a equipa fica mais próxima de vencer. Mesmo que não marque.
É esse o problema com Ronaldo. Já há bastante tempo que os golos não compensam o que se perde coletivamente, enquanto vemos o comboio do tempo levar-nos, à nossa frente, uma das melhores gerações da história. Não se pode ser mais claro. Gonçalo Ramos é melhor solução. Portugal precisa de alguém que ligue o jogo, não quem o queira sempre partir.
Ao olharmos para Ronaldo destapamos então Martínez e a sua extrema lealdade aos seus, que trai a lógica das decisões. Se o PSG pode jogar com Vitinha, João Neves e Fabián Ruiz, porque não basta ao selecionador juntar Bruno Fernandes a uma das mais fortes dinâmicas do campeão europeu ? Se há um bloco baixo, que sentido faz Leão? Se há Leão em campo porque tem do seu lado um lateral incapaz de dar largura? Se os jogadores estão estáticos, porque não obrigá-los a mexerem-se e aproximarem-se da baliza? Se um dos flancos esta em sobrecarga porque não virar o centro de jogo? O que podemos nós dizer mais se parece tão básico e Martínez não quer chegar lá?"

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