"Tem sido sugerido que o regresso do futebol é importante para resolver as classificações finais das competições profissionais desta temporada ou, até, pelo contributo económico do sector. Não desvalorizo nenhum destes aspectos.
Sem definição do acesso às competições europeias e sem que se apure quem sobe e quem desce, não será fácil encontrar critérios partilháveis que possibilitem o início da próxima época. Do mesmo modo, o futebol português movimenta centenas de milhões de euros, se considerarmos o seu impacto directo e indirecto na actividade económica. Dos media ligados ao jogo, passando pelas empresas que têm a sua imagem de marca associada à modalidade, até, claro, aos pequenos negócios alavancados pelas competições.
São muitos os que dependem economicamente das competições de futebol mas talvez a questão essencial seja outra: a forma como as nossas sociedades dependem colectivamente do futebol.
Este fim de semana, na sua coluna do 'Financial Times', Simon Kuper recordava que o escritor Hunter S. Thompson, criador do 'gonzo journalism', se suicidou quatro dias depois de deixar uma nota lapidar num bloco: 'A temporada futebolística terminou'. O exemplo é extremo - o suicídio que, sabemos desde pelo menos Durkheim, é, em muitos casos, precipitado por alterações profundas nas circunstâncias sociais - mas a preocupação de Kuper era demonstrar como é mais difícil para todos mantermos a sanidade mental sem desporto. A questão não é nova.
O desporto desempenhou um papel crescentemente importante no processo civilizacional. Para recuperar a reflexão de Norbert Elias, o desporto, quer na sua prática competitiva ou de lazer, quer para aqueles que assistem, é um espaço privilegiado para a racionalização dos impulsos e para controlo da violência física (foi recentemente reeditado entre nós o volume 'A Busca da Excitação - desporto e lazer no processo civilizacional', cuja leitura é ainda mais oportuna). O desporto teve sempre um papel funcional na estabilização das nossas sociedades.
Mas num momento em que muitas outras formas de pertença vão perdendo relevância, é também no desporto que encontramos um último reduto de pertença colectiva (somos cada vez mais adeptos dos nossos clubes, enquanto se vai diluindo a pertença a igrejas, partidos ou sindicatos). Acima de tudo, o futebol em particular traz consigo uma memória de experiências emocionais não contaminadas pela racionalidade. Nas alegrias, vibramos no estádio, abraçados a amigos, familiares ou desconhecidos, mas sofremos as derrotas também em conjunto. Num país sem futebol, perderíamos uma parcela da nossa humanidade que nos parece escapar no resto do quotidiano. Precisamos todos que nos devolvam o futebol."
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