"Na semana passada queixei-me aqui da fraca qualidade do nosso futebol. À excepção do Famalicão e, em alguns momentos, do Vitória de Guimarães, nenhuma equipa entusiasma. Funciona tudo em serviços mínimos. Na Europa, só a campanha do Braga e os pontos amealhados pelo Sporting têm adoçado a boca aos adeptos. O Porto de estofo europeu perde com Feyenoords e Rangers, já para não falar da eliminação com o Krasnodar, com uma facilidade que, noutras épocas, valeria tumultos no Olival. A exibição na Luz e os razoáveis dois pontos de atraso para o Benfica têm servido de almofada à contestação.
Felizmente para Sérgio Conceição, quatro jogadores sul-americanos – Marchesín, Uribe, Díaz e o incógnito Saravia – forneceram o pretexto ideal para o regresso ao Dragão da retórica da disciplina, da mão de ferro da estrutura e do vetusto discurso de que ninguém está acima da instituição. Nesta área, verdade seja dita, ninguém dá lições ao Porto. Depois de uma visita desastrosa à Escócia, um treinador não pode pedir mais do que “excessos nocturnos” de alguns dos seus melhores jogadores, a fim de reforçar o “espírito de corpo” que, à falta de bom futebol, acalma os adeptos. Não é um regresso à filosofia dos anos 90, com blackouts à mistura, mas traz um cheirinho da velha ordem, do Porto à Porto e demais lembranças da mentalidade de cerco que fez a glória do clube de Jorge Nuno Pinto da Costa.
Bem, dizia eu que me tinha queixado da fraca qualidade do nosso futebol e logo um dos poucos amigos que acompanha esta crónica me censurou o exagero com exemplos de campeonatos pavorosos como o grego, o turco, o belga e o russo, com os quais o ludopédio luso pode ser justamente comparado. Confesso que não acompanho com excessiva atenção a superliga turca. Um Gaziantepspor-Galatasaray pode excitar os otomanos, mas não me faz perder uma hora e meia da minha vida só para encontrar consolo na sua pobreza. O mesmo é válido para um Genk-Gent do campeonato belga ou qualquer jogo da peculiar liga holandesa com as suas catadupas de golos fruto de um horror cultural à organização defensiva.
Para miséria basta-me a nossa. Mas quando eu pensava que o cenário não poderia piorar, eis que o Benfica de Bruno Lage me ofereceu uma viagem no túnel do tempo, às épocas sombrias de Quique Sanchez Flores ou de Trapattoni, neste caso sem o aliciante de um fenómeno místico-futebolístico como Mantorras. Já nem falo da Champions. Que mais se pode dizer da participação do Benfica na maior competição de clubes a não ser que se tornou um martírio insuperável para todos os adeptos? O jogo em Lyon não foi pior do que a norma a que este Benfica nos habituou nas competições europeias e isso, meus amigos, é que é dramático. O horror ficou espelhado na jogada do segundo golo em que um jovem Tomás Tavares foi ultrapassado como se o adversário fosse de mota e ele de cadeira de rodas. Nesse momento suspirei por um paliativo, um jogo da segunda divisão turca ou entre tribos da Polinésia.
Na esperança vã de que estas exibições vergonhosas fossem compensadas por uma resposta musculada no campeonato, sentei-me para ver o jogo contra o Santa Clara e foi aí que o relógio andou para trás quinze anos. Ainda procurei vestígios de José Veiga, perguntei-me se Nuno Assis estaria no banco e, ao ver Gabriel a fazer passes para os apanha-bolas, tive saudades de um Beto, de um Bynia, de um Fernando Aguiar. O Santa Clara, bem orientado por João Henriques, estava tão confortável como eu no meu sofá, mas muito mais divertido a apreciar a sucessão de jogadas disparatadas.
Como o meu masoquismo tem limites, fui acompanhando a segunda parte intermitentemente. O Benfica deu a volta, graças ao único jogador que, ainda assim, parece ser capaz de desbloquear jogos: o também ele intermitente Pizzi. Florentino deu lugar a Carlos Vinícius, mas o segredo, segundo os relatos da imprensa, esteve no discurso de Bruno Lage no balneário. O Correio da Manhã garantiu que o treinador “abriu o coração aos jogadores”. E em que consistiu esta abertura cardíaca? Num apelo lancinante ao sentido de família: “Assim não ganhamos”, terá dito Lage aos jogadores. Quem, no seu perfeito juízo, o poderia desmentir? Prosseguiu: “temos de pensar nas nossas três famílias: a do balneário, que precisa de cerrar fileiras; na que está na bancada, com adeptos que nos apoiam; e na de sangue, por quem todos lutamos.” Este discurso churchilliano terminou com o treinador a dar uma de Arcanjo Gabriel: “Alegrai-vos, cheios de graça! O Senhor está convosco. Aproveito para vos dizer que a minha família vai aumentar!” Desconheço se esta nova Anunciação terá sido acompanhada de uma luz celestial a banhar o balneário, mas imagino os rostos dos jogadores iluminados pela Boa-Nova e a felicitar o treinador pela sua competência procriadora. De regresso ao relvado, jogaram pela trindade de famílias e por aquele que há de nascer e ao qual Bruno Lage, por uma questão de coerência bíblica, deverá pôr o nome de Jesus.
O meu temor é que, daqui para a frente, o treinador do Benfica não disponha de munições motivacionais de idêntico calibre. Que outro anúncio poderá fazer ao intervalo quando a equipa se mostrar tão apática e trapalhona como no último sábado? Anunciará a segunda vinda de Cristo? Este recurso a desesperadas cartadas emocionais recorda-me os tempos em que o Benfica tinha ao leme homens como Toni ou Mário Wilson. Ninguém esperava que dali viessem inovações tácticas. A única esperança era a de que, de alguma forma mágica, conseguissem motivar os jogadores com discursos sobre a velha mística benfiquista e os tempos em que as camisolas vermelhas chegavam para pôr os adversários em sentido, em que Nené não sujava os calções e Humberto Coelho assinalava os foras-de-jogo. O jogo nos Açores foi isso mesmo: um regresso aos tempos da fezada com uma visita angelical pelo meio."
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