"Este ano estive em Imola, precisamente na zona em que Ayrton Senna perdeu a vida em 1994, onde existe há uma pequena de estátua de bronze do tricampeão do mundo. O caminho entre a estação de comboio e o parque onde está o autódromo é longo e aborrecido, mas Senna foi o maior e quis lá ir. Itália é muita coisa e também um destino muito especial para a Fórmula 1, Maranello é ali perto, Modena também.
No local, pendurados na rede que separa o autódromo do parque há dezenas de bandeiras, t-shirts, cartões e diversas mensagens tocantes de fãs de todos os países imagináveis. Em silêncio, pensei em Senna, um campeão que também foi um salvador para os brasileiros nos difíceis anos 80 e 90. As imagens do seu cortejo fúnebre que existem no You Tube são qualquer coisa de extraordinário.
Para o meu filho, que é louco por Fórmula 1, sabe tudo, acompanha tudo e vê tudo, o impacto de visitar o local da morte de Senna, em plena competição, esteve longe de ser o mesmo. Para ele, Senna é um dos campeões do passado, como Fangio, Prost ou Schumacher, para falar de gerações completamente diferentes. Também por isso, a conversa do “desde que o Senna morreu que não vejo uma corrida”, que oiço tantas vezes quando me esquivo a almoços de domingo porque quero ver corridas, não faz sentido nas novas gerações.
A série documental da Netflix, Drive To Survive, está a ajudar a mudar a base de fãs da Fórmula 1. Segundo esse barómetro sempre tão certeiro que são as pessoas que nos são próximas, o meu filho tem-me dito que vários colegas dele adolescentes têm aderido em força à Fórmula 1 desde que viram a série. Lançada no princípio deste 2019, esta produção apresentou o circo a uma nova geração que não faz ideia quem era Senna ou Prost, quanto mais Piquet, Mansell, Vettel ou Raikkonen.
Ajuda que em 2018 tenham surgido novos protagonistas, em especial esse futuro campeão Ferrari que é Charles Leclerc (que brilha na série) e ajuda que muitos dos novos pilotos da Fórmula, como Lando Norris ou George Russell tenham contas nas redes sociais criativas, de partilha e comunicação com os fãs e não meras reproduções de uma vida artificial ou comercial. O espantoso é que a primeira temporada nem sequer conta com as equipas de ponta, mas mesmo assim milhares e milhares de miúdos em todo o mundo passaram a seguir o circo.
Há uma segunda iteração a ser produzida, já com Ferrari e Mercedes, e é provável que esta decisão dos detentores da F1 e das equipas, a de abrirem as portas à televisão, tenha sido uma das melhores decisões de sempre numa modalidade desportiva que completou mil corridas na China, em Abril.
Na conquista de novos públicos para este desporto, acresce que alguns destes novos pilotos desenvolveram-se literalmente através dos simuladores, seja em Playstation, seja em ambiente PC, em jogos que qualquer um pode jogar em casa. Lando Norris ou Max Verstappen costumam correr entre eles, em simulador, muitas vezes a seguir às corridas, e partilham as corridas com os fãs, em vídeos no YouTube, como milhões de outros miúdos e graúdos por todo o mundo.
Talvez porque os deuses também estejam fartos da conversa “desde que o Senna morreu que não vejo uma corrida”, a época de 2019, em especial a partir do primeiro terço da temporada, tem sido magnífica, com corridas emocionantes, intensas e imprevisíveis, de não se conseguir ficar sentado, com competição a sério da primeira à última volta. A Mercedes voltou a vencer o Mundial, pela sexta vez seguida, mas é porque é a melhor e faz por ser a melhor. E porque a F1 sempre, insisto sempre, viveu de hegemonias.
Durante décadas, a F1 pertenceu a Bernie Ecclestone que achava ótimo que a idade média do espectador das corridas fosse acima dos 50 anos e ignorava por completo a internet e a chamada social media. Há uns anos, Bernie vendeu a F1 à Liberty que, por ser americana, foi recebida com desconfiança por fãs, equipas e comentadores. É de lembrar que a F1 é uma modalidade de raiz europeia, assente numa linhagem nobre dos garagistes, de Enzo Ferrari a Frank Williams, cujas equipas eram constituídas por meia dúzia de mecânicos sempre de cara mascavada de óleo, que corriam à maluca, com vários pilotos a morrer todos os anos, em desastres horrendos.
Hoje, a F1 é uma indústria de ponta, muito complexa, onde a segurança é fundamental . E não, não se transformou numa americanice cheia de extravagâncias. Pelo contrário, mantém um certo verniz próprio dos gentlemen que a Liberty está a saber aproveitar. A F1 é elite, continua a ser a categoria número um do desporto automóvel, uma marca global, com cada vez mais provas (no próximo teremos 22 corridas) e agora tem direito a série Netflix e pode ser seguida pela internet de inúmeras formas.
Do ponto de vista do que é como categoria, os Fórmula 1 continuam a ser “single seaters” (ou seja, os carros só têm o lugar do piloto) com “open wheels” (ou seja, a carroçaria nunca cobre os pneus), onde todos os carros são diferentes, ainda que possam partilhar a unidade de potência e há quatro, Renault, Mercedes, Honda e Ferrari.
Esta frase, todos os carros são diferentes, é o fundamento da F1. Literalmente, a meses de se começar a época, todas as equipas recebem um livro de regras que têm de cumprir, que incluiu pormenores tão específicos como o tamanho dos espelhos retrovisores e a que distância do habitáculo do piloto podem estar montados, e a partir daí fabricam um carro novo, onde montam a unidade motriz correspondente, que mistura combustão com baterias carregadas em corrida. Vivemos, desde 2014, a era híbrida, os carros têm motores V6 turbo, com sistemas de recuperação de energia e combustível limitado a cerca de 100 quilos, numa decisão que teve muito de mensagem ambientalista e que faz com alguns fãs clássicos ainda rosnem pelos V8 e pelos V12.
O que é espantoso é que dentro dessas regras, os fabricantes de motores vão lançando actualizações e os engenheiros e as equipas fazem evoluir os carros de corrida a corrida, o que torna a F1 num campeonato imprevisível. Antes da pausa de verão, em agosto, a Ferrari não vencera ainda um grande prémio e já se apostava que não conseguiria e eis que quando regressa o Mundial, a marca italiana ganha três de seguida, incluindo em Monza.
Em rigor, as equipas nunca sabem porque é que os seus adversários são mais rápidos, e falamos de diferenças de décimos de segundo, e tentam adivinhar. Erros cometidos no desenho do carro pagam-se caro, como tem acontecido na Williams, que é a última do pelotão apesar de ter o melhor motor. Estará a Williams melhor em 2020? Ninguém sabe e esse é um dos fascínios desta modalidade.
A acusação que são sempre os mesmos a ganhar é confirmada pelos factos, mas usar essa medida para desdenhar a F1 é a mesma coisa que não ficar empolgado com eleições porque vencem sempre os mesmos partidos ou não ver a Champions porque no fim ganham sempre os mais ou menos mesmos. Além disso, na Fórmula 1 sempre ganharam os mesmos, sempre houve domínio, mesmo nas épocas mitificadas de Lauda, Piquet, Senna, Prost, para não falar de Schumacher. Agora domina a Mercedes, como antes dominava a Red Bull e antes disso a Ferrari. E já dominaram a Mclaren e a Williams.
A principal razão por que as pessoas acham que não gostam de Fórmula 1 é porque perderam o hábito. Antigamente era ritual em canal aberto na hora de almoço de domingo de muitas famílias, também porque só havia dois canais. Hoje, as corridas são muito mais bem filmadas, temos acesso a muito mais informação, incluindo as comunicações dos pilotos com as suas equipas e gráficos de todo o tipo e até há uma app da própria Fórmula 1 onde se podem ver as corridas todas.
Na nova F1, um dos desportos que melhor está a encaixar no ritmo que as redes sociais vieram impor ao mundo, há todo um ecossistema incrível em redor da Fórmula 1. Quase tão bom como ver as corridas é poder ouvir balanços e reviews nos imensos podcasts e até as declarações honestas, directas e explicativas dos protagonistas. Alguns destes podcasts, como Missed Appex ou Beyond The Grid, são escutados por milhões de pessoas, existindo um genuíno gosto construtivo na partilha entre os fãs e adeptos. De há dois ou três anos, não há um dia que não converse com o meu filho sobre Fórmula 1 ou não partilhemos mensagens sobre incidências, novidades, questões técnicas ou de pilotos e deixámos de o fazer sobre futebol.
No próximo ano haverá 22 corridas pela primeira vez e em 2021 voltam a mudar os regulamentos, numa tentativa de nivelar todos os competidores. É de supor que a nova temporada da série da Netflix, que sairá em Fevereiro, contribua para atrair ainda mais público jovem. Se a fórmula resultou, não há razões para não continuar com a fórmula."
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