"Uma das primeiras coisas que aprendi desde que me lembro de ser gente foi a não julgar ninguém pela aparência. Lições antigas e sábias que os avós passavam aos netos pro educação, mas que tinham por trás a sabedoria de que uma pessoa é muito mais do que aparenta ser, mesmo quando os sinais que fisicamente comunica aparentam indicar o contrário.
Este é um dos grandes dramas da deficiência e uma injustiça social cruel. Mas o que faz, para lhe reagir, um cérebro humano encerrado num corpo que não lhe permite dar expressão ao pensamento= Às vezes nem comunicar...
Encontra o seu caminho e engenha estratégias de evasão verdadeiramente extraordinárias que orgulham o ser humano de ser capaz destas mentes brilhantes. Não resisto a contar um episódio.
O meu amigo M... dirigente num ministério do governo romeno, é um jovem brilhante, extremamente observador (sim: observador!) e duma criatividade sem fronteiras. Simultaneamente, é um dos técnicos com maior preparação teórica e qualidade intelectual que conheci. Por ocasião de umas conferências em Bruxelas, assistimos juntos a um desenrolar de projectos em várias línguas que se sucediam por grupos de seis a que se seguiram esclarecimentos e discussões. Para meu espanto, lá estava o M... a questionar os conferencistas um por um, de forma pertinente e incisiva. Não resisti e comentei: 'Mas, se tu és cego, como é que fazes?' A resposta foi desconcertantemente simples: 'Crio um ficheiro na minha cabeça por cada conferência e vou construindo uma espécie de apresentação em slides. Depois volta lá e retomo',
Conto este exemplo vulgar, do dia a dia, para evitar comparações fáceis com académicos brilhantes, prémios Nobel e cientistas de corpo encarquilhado e fala distorcida para quem a maior parte da humanidade olharia com compaixão e alguma 'superioridade' e a quem, no entanto, deve muita da sua evolução tecnológica e científica.
Estas mentes brilhantes, turbilhões de sentimentos não raro conhecidas pelo seu mau feitio, não são imunes às paixões comuns como o futebol, sempre presente e desafiador dos sonhos. Neste caso, vivido com redobrada intensidade no fenómeno de projecção individual sobre os performers do sucesso, numa identificação com os jogadores de eleição que quase transporta para o campo, em jeito e velocidade, o que a mente quer fazer, libertando-a por momentos das correias que o corpo debilitado impõe. Quando acontece um golo, a explosão é imediata, e a alegria, intensa e genuína. Quando se entende e acompanha a estratégia e as tácticas, com pensamento matemático e observação científica, é no lugar do treinador que aterra o pensamento, pairando sobre o jogo como a águia que se ama e descortinando as opções do mister por entre alterações e resultados. Aí celebra-se a vitória duas vezes, com a alegria efusiva do 'soldado' e com a serenidade inteligente do 'general'. Quando assim é, tornar-se inevitável elevar o treinador à condição de ídolo, porque os entendem os seus comos e porquês e porque a identidade e a pertença a algo tão grandioso como este clube exacerbam sentimentos e desencadeiam acções.
Depois, é pegar na engenharia, informática neste caso, e usar as suas técnicas para fazer arte e dar expressão à criatividade, ultrapassando uma vez mais os limites do corpo, o tremor das mãos, a inconsistência do traço, o cansaço extenuante. Nova estratégica: decompor o retrato, matematicamente analógico imaginado a traço contínuo, numa nuvem densa de pequenos pontos com descontinuidades, matematicamente digital, onde o cérebro humano consegue ler o reconstituir o retrato figurativo. Era isso que faria um computador ao criar uma imagem digital do retrato do mister com uns milhões de pixeis, mas aí não haveria esforço nem arte, nem conquista. Aí não sobreviria a superação de conseguir por cima das limitações do corpo e da dor insuportável a cada duas horas de trabalho, dia após dia, até ver o sorriso do treinador do Benfica emergir por entre legos e coroar a conquista ao entregar-lhe o retrato em mãos no Caixa, ambos como vencedores!"
Jorge Miranda, in O Benfica
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