"A jogadora que pinta o cabelo com cores berrantes pode ter ficado bem mais popular quando recusou uma eventual visita a Donald Trump, caso os EUA vençam o Mundial - jogam, esta terça-feira, a meia-final contra a Inglaterra (20h, RTP2) -, ou por dizer que "é impossível" ganhá-lo "sem gays na equipa". Mas Megan Rapinoe, capitã da selecção americana, é bem mais do que isso
Denise leva os dedos indicadores à boca e sopra. A filha está lá em baixo, no relvado, algo perdida, a passar um raio-x às bancadas com os olhos, desesperada por não encontrar quem procura no meio de 20 mil pessoas. A mãe assobia, nada. Assobia de novo, não há reacção. Assobia, pela terceira vez, o assobio a que habituou os filhos desde pequenos, e a mulher de cabelo curto e descolorado desvia a cabeça.
A filha toca com uma mão no ouvido e sorri. Confirma à mãe que a ouviu e a vê com o pai e a irmã gémea, mas, por muito que continuasse a inspeccionar, nunca veria o irmão mais velho.
Ele estava dentro da sua cela, na prisão, sentado no topo de uma pilha de livros, seriam uns 60, presos por pedaços rasgados de lençol, para ser capaz de olhar pela janela da porta e avistar, ao fundo do corredor, uma pequena televisão que estava a transmitir o jogo.
Megan Rapinoe estava em Dresden, na Alemanha, acabada de fazer a assistência para o golo que fez os EUA ganharem ao Brasil, no prolongamento dos quartos-de-final do Mundial de futebol feminino, em 2011. A jogadora da imagem entre o excêntrico e o vistoso, que na fase de grupos, contra a Colômbia, beijara uma câmara e cantara “Born in the USA” após marcar pelo país em que nascera, já começava a dar nas vistas.
Brian Rapinoe estava confinado à cela de uma prisão, nos EUA, cada vez mais escondido de tudo.
Um encarcerado da vida que, logo aos 15 anos, fora detido por traficar metanfetaminas na escola; aos 18, já consumia heroína quando foi preso por roubar um carro e atropelar uma pessoa; nos 27, tinha cruzes suásticas tatuadas no corpo, fazia parte de gangues de prisão e era transferido para uma prisão de alta segurança; e chegava aos 35 anos a ter de empilhar livros para vislumbrar a irmã do cubículo de uma cela. “Foi o mais difícil. Doeu. Não estava lá para o testemunhar, para lhe dar um abraço, para fazer parte daquilo”, diria, à “ESPN”.
E muito do que Megan Rapinoe é - a eloquente capitã da selecção dos EUA, a franca faladora à imprensa sobre qualquer assunto, a dedicada activista de causas sociais - ou é conhecida por ser - a jogadora que recusa visitar Donald Trump à Casa Branca, caso as americanas ganhem o Mundial - está ligado, de uma forma ou de outra, ao percurso do irmão.
A consciência social que faz a futebolista ser apoiante de movimentos como o #MeToo, o Black Lives Matter e o Time’s Up (contra o assédio sexual) germinou da experiência de acompanhar o percurso de Brian que, confessou, tem “muitas ramificações" para lá do abuso de drogas. “O meu irmão é especial. Tem tanto por oferecer. Seria uma pena se não deixasse mais nada no mundo para além de penas de prisão”, resumiu a jogadora, de 33 anos, sobre a pessoa que a fez olhar para o quão fundo chega a pegada que uma pessoa pode deixar nesta vida.
Ver o que não define mas afeta o irmão, fê-la querer definir-se por aquilo que assume e defende.
Em 2012, um ano depois de jogar o primeiro Mundial, assumiu-se publicamente como lésbica. Quis lutar contra “a visão demasiado estreita” em relação aos gays, os “estereótipos que ainda persistem” e as “visões incompletas sobre quem [eles] são enquanto pessoas”, explicou, à “Sports Illustrated”, quando se tornou na primeira atleta gay a ser capa da revista, na sua edição dedicada a fatos de banho.
Em 2016, decidiu ajoelhar-se ao ouvir o hino nacional dos EUA, primeira na sua equipa (Seattle Reign), depois na selecção. Tocar com um joelho no solo, indo contra a norma comum, não teve, por si só, que ver apenas com Colin Kaepernick, o jogador da NFL que se celebrizou, mas não mais jogou, por protestar dessa forma contra a violência policial contra negros.
Megan Rapinoe queria fazer alguma coisa. “Qualquer coisa que fosse”. Nunca sofreu violência policial ou viu “o corpo de um familiar morto na rua”, mas, escrevendo no “Players’ Tribune”, admitiu que não podia “ficar indiferente enquanto há pessoas neste país a lidar com esse tipo de problemas” diariamente.
E perguntou-se e respondeu e voltou a questionar enquanto se ajoelhava e não era apoiada em público, ou em privado, pela federação do país, que a deixou de convocar durante uns tempos quando a sua forma física, emperrada devido à recuperação de uma rotura de ligamentos no joelho, tornou a ausência plausível de ser justificada: “Importo-me, realmente, com a igualdade das pessoas? Se sim, então tenho de exigir mais, e (...) se estou numa posição de influência, posso usar a plataforma para elevar as milhões de vozes a serem silenciadas”.
Antes destes dois actos, Megan não estava tapada por um manto de invisibilidade. Agindo, porém, deixou de ser invisível para muita gente. E, sobretudo, optou por deixar de sê-lo.
Recuperada a forma e atinada com as boas prestações em campo, Rapinoe continuou a protestar, embora não sobre um joelho. Quando a federação de futebol dos EUA instituiu, em Março de 2017, que as jogadores se devem “pôr de pé, respeitosamente”, ao escutarem o hino, ela começou a não o entoar, nem a colocar uma mão sobre o coração. Quando faltavam 95 dias para o primeiro jogo dos EUA no Mundial, foi uma das 28 signatárias da queixa que as jogadoras da selecção apresentaram num Tribunal Federal, contra a federação, por discriminação de género.
Megan fala, de forma cândida e directa, na mesma medida em que, no campo, decide e decisiva se torna para a equipa. É a capitã e a melhor marcadora (cinco golos, a par de Alex Morgan), em parte por bater os penáltis, muito por ser uma das jogadoras mais experientes e esfomeadas por mais que há. “Não temos chefs pessoais. Não voamos em jactos privados. Trabalhamos em ginásios como uma pessoa normal. Não temos conveniência de jogadores masculinos de topo. Mas é o trabalho mais divertido do mundo”, assumiu, em outro texto no “Players’ Tribune”, coloquial ao ponto de ser fluente em palavrões.
Como o que utilizou, no início do ano, no vídeo em que surge a dizer que não iria à Casa Branca, onde está Donald Trump. "Com a excepção do palavrão, que terá chateado a minha mãe, mantenho tudo o que disse", garantiu, numa conferência de imprensa, já durante o Campeonato do Mundo. Megan Rapinoe diz o que pensa, sem grandes filtros pelo meio, e não tem problemas com isso.
Depois de marcar os dois golos que eliminaram a França, nos quartos-de-final, a americana que, em tempos, se descreveu como um "protesto ambulante", disse que "não se pode ganhar um campeonato sem gays na equipa. Nunca foi feito antes, nunca. É uma ciência".
Ganhando, ou não, o Mundial, os EUA terão que ultrapassar a Inglaterra em campo, nas meias-finais - e terão feito de tudo para o conseguirem, mesmo antes de jogarem à frente de adeptos e televisões.
No sábado, responsáveis da Federação Inglesa de Futebol apanharam alguns elementos da entidade homóloga americana, sem o equipamento oficial, a visitarem os quartos de hotel das jogadoras inglesas. Os EUA disseram que essas pessoas estavam apenas a estudar um possível local para a comitiva ficar antes da final, que se jogará no domingo.
Quem não ficará lá hospedado, ou qualquer outro hotel por França, é Brian, que não consome drogas há 18 meses, está a um de sair da prisão e troca sms todos os dias com a irmã. No dia em que os EUA acabaram com a Tailândia, por 13-0, a capitã da provável melhor selecção do Mundial, olhou para o telemóvel e leu: "Megs, o facto de não me poderes pagar uma viagem, com tudo incluído, para França, parte-me o coração"."
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