"Não é preciso ser um engenhoso documentalista, para rapidamente deduzir que o José Mourinho e o Cristiano Ronaldo não têm par na História do Futebol: são, respectivamente, o único treinador de futebol e o único jogador de futebol, que já alcançaram vitórias, nos campeonatos das mais famosas ligas do mundo todo: Inglaterra, Espanha, Itália. Do Leo Messi a linguagem usada por muitos jornalistas é essencialmente em espiral, pois que, quanto mais valorizam a sua singularidade, mais realçam, com forte convicção, que o argentino, como jogador de futebol, tem especiais poderes, que a Natureza lhe concedeu. José Mourinho, no programa On the Touchline, da RT, recorreu a um elemento simbólico, a jaula, para poder jogar-se, como adversário, com o Messi. “Quando ele tem a bola, no um contra um, estás morto. Para parar Messi, tens de criar uma jaula”. Enfim, todos os argumentos em prol da excepcionalidade futebolística do Ronaldo e do Messi ganham corpo com a indiscutível excelência dos seus desempenhos desportivos. Com alguma (ou muita) ousadia, já são variadíssimos os críticos que opinam, sem temor nem tremor, que o Ronaldo e o Messi são os dois melhores jogadores da história do futebol.
Francamente, vi jogar o Di Stéfano e o Pelé e o Garrincha e dos cinco jogadores não sei qual é, para mim, o melhor de todos. E o Maradona que, na Argentina, tem por ele um culto que o idolatra, como se de um deus se tratasse? E o Cruyff, que o Maurício Pochettino, treinador do Tottenham, que o viu jogar e com ele conviveu, o institui como um génio, tanto nos estádios como a falar com aqueles que o procuravam, mercê de uma sedutora estrutura argumentativa? E, após “o maior jogo da história do Ajax, na Johan Cruyff Arena” que permite ao emblema inglês possa disputar a “final” da Liga dos Campeões, Maurício Pochettino não resistiu ao forte dramatismo daquele jogo, ajoelhou-se no relvado e, de lágrimas nos olhos, com voz gritada e comovida, afirmou: “Os meus jogadores foram heróis e o Lucas Moura, feliz autor do hat-trick, foi um super-herói”. E olhava o céu estrelado, donde o Cruyff o contemplava, com a mesma expressão sincera da sua personalidade livre e combativa…
Quando, entre os 40 e os 70 anos, mas a denunciar ainda o vigor da juventude, percorri a Europa e a América Latina, ao serviço dos mais díspares sectores da minha profissão de técnico da D.G.D. e de professor universitário, pedia sempre informações nos hotéis, onde me hospedava, no intuito de poder ver um jogo de futebol, rico de significado e palpitante actualidade. No entanto, um jogo com a ardente combatividade e a galhardia sentimental do Ajax-Tottenham do dia 7 de Maio de 2019, ou do Liverpool-Barcelona do dia anterior, que eu vivi, pela televisão, só raramente se contempla. Acerca do Ajax-Tottenham, A Bola titulava assim a reportagem do jornalista Pedro Soares: “Um hino à loucura do futebol”. E o Pedro Soares, de coração aberto, cantava genuíno e franco o seu Te Deum: “Antes de mais, agradeçamos aos deuses do futebol, por nos presentearem com meias-finais da Liga dos Campeões, assim, em que o que parecia garantido, na primeira mão, deixou de o ser, na segunda. Meias-finais que nos fizeram ver, pela “enésima” vez, neste fantástico desporto, que nada está perdido até estar e que os jogos só acabam, quando o árbitro apita pela última vez”. Erik Ten Hag, treinador do Ajax, a sua figura ficara incandescente como o rescaldo daquele jogo que lhe foi adverso mas, de cabeça levantada e olhos cerrados, não deixou de dizer: “Perdemos e estivemos perto da vitória. No último segundo, no entanto… foi cruel. Não tenho outra palavra: foi cruel”. O Ajax, na primeira meia-final, vencera na casa do Tottenham, por 0-1. Na segunda meia-final, na Johan Cruyff Arena, ao intervalo, já o Ajax, garboso e convincente, vencia por 2-0. Afinal, inspirado pelo que de melhor tem um avançado (a velocidade e o remate certeiro) Lucas Moura faz três golos e, com inquieta irreverência, “ressuscitou” o Tottenham e iluminou-lhe o caminho do jogo final da Liga dos Campeões. Christian Eriksen, médio dos londrinos, fala do seu colega de equipa com afecto e gratidão: “Uma estátua para Lucas! Jogar tanto só está ao alcance dos eleitos!”. Lucas Moura foi, para o Tottenham, o que o Ronaldo e o Messi são, habitualmente, para as suas equipas. Só que ambos estão fora da Liga dos Campeões!
De facto, o cerne rijo que sustenta a frondosidade do futebol do Ronaldo, o ímpeto criador que irrompe, natural e vivo, do futebol do Leo Messi – nem um, nem outro, que deixam os seus admiradores, horas esquecidas, a relembrar a beleza dos seus golos, chegaram para superar a força de uma imparável vontade dos seus adversários. Demais, tanto o Ronaldo, como o Messi, embora pessoas superdotadas à prática do futebol, embora o vento forte e arrebatador da publicidade, nos “media” e nas redes sociais, tanto o Ronaldo como o Messi são seres humanos, nada mais do que seres humanos! Também o fracasso, a dor, o sofrimento, a morte, a solidão, o desespero, a penumbra discreta e melancólica de uma grande tristeza, a piada áspera e a vis azeda do treinador, tudo isto eles sofrem e tudo isto pode tornar-se insuportável e condicionar a sua prática de profissionais de futebol. Os homens, os animais, as coisas estão sujeitos às leis que regem o universo. No cristianismo, porém, o ser humano é mais do que a morte. Muitos pensadores, porém, como K. Marx, E. Bloch, J.-P. Sartre, S. de Beauvoir e outros, mesmo numa prosa temperada em lume brando, não têm quaisquer dúvidas na supressão total, radical, com a morte, da existência humana. Em Le Myte de Sisyphe, Camus interroga e interroga-se: “Que liberdade pode haver, em sentido pleno, sem a garantia de eternidade?”. A Gabriel Marcel, no seu Homo Viator, um existencialista cristão, sobrou-lhe vagar para escrever: “Se a morte fosse a realidade última da vida, os valores seriam pura e escandalosamente anulados e a realidade perderia qualquer significação e sentido”. Teilhard de Chardin não esconde que a morte fisiológica acontece como um elemento fundamental da evolução. Mas como, para ele, o sentido da evolução situa-se no movimento da transcendência da Natureza para o Homem e do Homem para Deus, a morte do Homem, sem ressurreição para um novo ser, também seria a morte da evolução.
Escutemos o falar pausado e pensado do Padre Manuel Antunes: “Na civilização de reflexos condicionados e condicionantes que é a nossa e que, cada vez mais, será a nossa, se o homem não desenvolver em si aquele “suplemento de alma”, de que já falava Bergson, ele crispar-se-á no gesto de repetir Sísifo. Mas pode Sísifo ser feliz? O mito diz-lhe que não e a experiência diz-lhe também que não” (Compreender o Mundo e Actualizar a Igreja, Gradiva, Lisboa, 2018, p. 33). O profissional de um futebol altamente competitivo, nos clubes de “inesgotáveis” possibilidades económico-financeiras, tem de transformar-se (assim o exigem, ansiosos, os dirigentes, os adeptos e a larga maioria dos comentaristas) no “homem-máquina” repetitivo, obediente, servil, submerso numa existência sempre intranquila, tensa e intensa. Sim, materialmente nada lhes falta, nem dos mais belos exemplares da profissão mais antiga do mundo, mas faltam-lhes muitas vezes, demasiadas vezes, razões válidas de viver, quero eu dizer: o sentido último da vida! E sem ninguém que lhes recorde, para além de um vago “amor ao clube”, o culto da dignidade humana. Ansiosos e frenéticos, lançados numa competição que muitos dirigentes julgam sem limites (os dirigentes, suprema contradição, que os aconselham) – o Ronaldo e o Messi e os seus colegas de equipa e os seus colegas das outras equipas, que praticam o mesmo desporto, vivem uma realidade marginal que não resiste ao tempo. Porque aqueles atletas são vistos, observados, estudados, avaliados, sobretudo como homens-máquinas e não como pessoas. Pedro Pablo Pichardo, exilado cubano e atleta do Benfica, bateu o recorde português de triplo-salto, que o Nelson Évora ostentava. Saltou 17,95 m. e já sonha ser campeão do mundo e olímpico, com as cinco quinas no peito. O pai, que também fugiu à ditadura cubana, é o treinador. E é o próprio Pichardo que assim responde à pergunta do jornalista: “costumo dizer à minha família que eu sou como um robô que o meu pai foi construindo peça por peça. Quando o mecânico do robô não está, o robô funciona, mas não funciona bem” (revista do Expresso, 2019/5/11). O Pichardo é filho do treinador, mas não deixa de ser robô. É assim, quase sempre, o desporto altamente competitivo!
Depois, há que ter também em conta, principalmente no espectáculo desportivo, o predomínio da imagem sobre a realidade: “O predomínio da imagem, da tentativa de mostrar tudo, incluindo a intimidade do sujeito, tem outra consequência perversa: o esvaziamento da intimidade. O “voyeurismo” atual de todas as câmaras indiscretas, que querem captar as pessoas, na sua intimidade (…) o que consegue é que a interioridade e o segredo da pessoa desemboque na trivialidade. Dá-se uma aparência de autenticidade e intimidade, que acaba na exploração frívola e comercial do mórbido, sem que a imagem exprima algo do mistério do sujeito. A hiperrealidade termina na alienação” (José Maria Mardones, in Anselmo Borges, coord., Deus no século XXI e o futuro do Cristianismo, Campo das Letras, Porto, 2007, p. 145). E, após o programa televisivo, principalmente sobre a vida de um artista ou de um conhecido desportista, fica, na lembrança dos espectadores, um desfilar de banalidades, que não são pensadas, mas aceites como óbvias, como verdadeiros axiomas. Não há tempo para uma crítica cientificamente fundamentada, antes de emitir-se um juízo. Na televisão, são poucos os programas acompanhados de uma séria reflexão. Aliás, eles não estão aí para estimular o pensamento, mas para seduzir. Aliena-se mais facilmente, através da sedução do que da coerção. E do Ronaldo e do Messi e dos demais jogadores que os querem imitar surgem ídolos, fruindo uma vida almofadada de regalos, ou seja, surgem ídolos imersos num individualismo muitas vezes aviltante. Mas não é verdade que o Desporto é um dos aspectos do movimento intencional da transcendência? E onde está a transcendência numa Informação interessada em gerar consumidores abúlicos, esquecidos da sua identidade de seres conscientes, solidários e livres? Quem não se transcende não vive. E a transcendência é bem mais do que futebol…
É conhecida a frase de Lacan: “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Por isso, porque somos nós e a nossa circunstância, a palavra que nos habita chega-nos também de muitos outros lugares. A nossa vida emocional, intelectual, espiritual resulta da conjugação do que é nosso com o que é interpessoal. Para Ernst Bloch, a essência não é tanto o que já existe, mas o que ainda não existe, mas o que aguarda, no cósmico processo da evolução e pela força da nossa vontade, o momento exacto para nascer. Viktor Frankl, ao adentrar-se no conceito de “inconsciente”, encontra, nele, não só uma impulsividade inconsciente, mas também uma espiritualidade inconsciente. O inconsciente é uma desafogada varanda, para surpreendentes panoramas. Também do inconsciente, portanto, se descortina a transcendência, como a realização inteira de cada um de nós. E, na sequência de Teilhard de Chardin, uma transcendência como caminho para Deus. “Somos todos seres desejantes. Talvez o desejo seja a nossa experiência mais imediata e, ao mesmo tempo, mais profunda. Coisa que já Aristóteles vira e que Freud colocou como eixo fundamental para entender o motor interno humano. A nossa estrutura de base é o desejo. E faz parte da dinâmica do desejo não ter limites (…). Não queremos só viver muito, queremos viver sempre. Desejamos a imortalidade” (Leonardo Boff, Tempo de Transcendência, Sextante, Rio de Janeiro, 2000, p. 60). Por isso, identificar um desejo infinito com um objecto finito, quero eu dizer: identificar o existencial anseio de “ser-mais” com automóveis e mansões de luxo e com faraónicas mordomias e com um coração trespassado pela seta do amor, é confundir o infinito, o ilimitado, com o finito, o limitado, ou Deus com a idolatria de falsos deuses. O Ronaldo e o Messi são dois homens e dois nomes imorredoiros na história do futebol. E é a sua humanidade que vai perdurar, quando o futebol acabar, para eles. E ser politicamente livre é pouco, se não soubermos para que serve a nossa liberdade."
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