"'Vénia ao 3° Anel' é a visão de um Benfiquista profundamente apaixonado pelo ideal do seu clube, mas por isso exigente e racional com quem momentaneamente o representa. A águia tem sempre que voar alto
Uma despedida. Uma cara. Uma paisagem. Um golo. Um acidente. Há certos flashes que nos ficam guardados na memória. Uma espécie de fotografia cerebral que quando fechamos os olhos conseguimos ir buscar. Por algum motivo tornamos aquele momento em algo intemporal e sabemos que enquanto formos vivos, estará guardado no disco rígido deste órgão complexo que temos dentro do crânio. Um desses momentos que tenho arquivado vem do dia 22 de Março de 2003, quando já a caminho de um túnel de acesso à saída parei, afastei-me da multidão e voltei a olhar para trás. E ali estava ele. Velho, incompleto, desgastado...majestoso, imperial, monumental. O Estádio da Luz. O original. Onde Eusébio se fez lenda. Onde o clube festejou 23 campeonatos e 8 apuramentos para finais Europeias. A visão do 3º Anel ficará para sempre comigo. Uma bancada tão grande e tão alta que parecia que só acabava nas nuvens. Sabia que era a última vez que o estava a ver.
A primeira vez que nele tinha entrado tinha sido uns 15 anos antes. Era um miúdo de 9 anos e, por via da amizade da minha mãe com alguns elementos da equipa técnica de basquetebol do Benfica da altura, dei por mim nos corredores labirínticos (ou pelo menos na altura assim me parecia) daquele gigante de betão. Não disse a ninguém, mas a cada esquina o meu coração hesitava em baquear na expectativa que ali sim, ia conseguir ver o relvado, ia conseguir ver aquela enorme bancada que ocupava quase por completo cada fotografia que via da mesma nos jornais e revistas. Já várias vezes tinha pedido à minha mãe para me trazer a ver um jogo, mas "ainda és muito novo" era a resposta dela. Até que ao fim de um túnel...a luz! A Luz! E foi instantâneo: sem nada dizer, desatei a correr, pouco importado com as palavras da minha mãe a perguntar "o que estás a fazer?". Chegado ao fim do túnel, ali estava ele. Ainda mais incrível do que tinha imaginado. À primeira vista e à última vista tive o mesmo sentido de esmagamento.
Não vivi o seu auge, não estive nos míticos jogos com o Steaua e o Marselha, ou até com o Brasil para a final do Campeonato do Mundo sub-20, onde o meu tio me conta que viu esses jogos nas escadas, apesar de ter entrado várias horas antes do apito inicial e com a sensação em vários momentos que nem sequer tinha os pés no chão, tal o aglomerar de gente. O mais aproximado que senti a isso foi naquele jogo com o Parma em que a Luz inteira cantou os parabéns a Rui Costa. Não estariam 120.000, mas não andaria longe disso.
Mas não era só a imponência. Era a História. Era andar nas imediações do estádio e ver os inúmeros relvados e campos de ténis construídos por Fernando Martins. Era entrar na antiga "sala dos sócios" e ver afixados quadros da equipa do Benfica Campeã Nacional 1963/64 ou coisa do género. Era no meio de todo aquele fumo de tabaco, ver os sócios a debater o clube enquanto alguém ganhava mais um jogo de bisca. Eu miúdo olhava para aquelas caras envelhecidas e só pensava "uau, este senhor deve ter visto o Eusébio a jogar! Deve ter visto o Benfica Campeão Europeu!".
Mesmo nos tristes tempos do "Vietname" (expressão perfeita que Pedro Ribeiro, actual director da Rádio Comercial, criou para designar a bomba atómica que aconteceu ao Benfica entre 1994 e 2004) era arrepiante entrar na Luz. Já toda vermelha, com as cadeiras a substituírem o antigo cimento ou nalguns casos a "almofadinha" que funcionários do clube sempre vendiam, e lá em baixo a Fafá de Belém a cantar o "Vermelho, vermelhão". E depois o rival entrar em campo sob imensa assobiadela. Seguido do Benfica. Aquelas camisolas vermelhas, herdeiros de Eusébio, Coluna e Chalana a correrem em direcção ao terceiro anel, para fazer a vénia. "Repara que eles primeiro fazem para nós, o povo, e só depois se viram para o lado do Presidente. Porque o Benfica somos nós." contava-me o meu tio.
Gosto muito da nova Luz. Já lá celebrei 6 Campeonatos e festejei golos e jogos inesquecíveis. A rotina pré-jogo nas imediações do estádio, com companheiros de bancada nas roullotes do Alto dos Moinhos é das coisas que mais prezo enquanto adepto de futebol. Entrar e sair sem confusões, com todo o conforto é uma maravilha. É um estádio grande, bonito e que me entrou no coração. Mas não é a antiga Luz. Nem pouco mais ou menos. E cada vez que olho para o Camp Nou, Bernabéu ou Anfield penso...o que fomos nós fazer? Recordo as palavras de Fernando Martins em 2002 a pedir a intervenção do governo para que proibisse a demolição da Luz: "é como Roma demolir o seu Coliseu!", dizia o antigo Presidente. Que desde que soube que os sócios tinham aprovado a mudança de estádio nunca mais voltou a passar na 2ª Circular, até ao fim dos seus dias, tal o desgosto.
Não chego a tanto. Mas a Luz, aquela Luz...ficará sempre no meu coração. Felizmente tenho o flash. Fecho os olhos e ali está ele. Velho. Incompleto. Desgastado. Majestoso. Imperial. Monumental."
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