"(...) Eduardo Salvio, 'esse rapaz brilhante e intermitente como luzinhas de Natal'
Velho amigo sportinguista ainda hoje chora ao falar do Chirola e dos inatingíveis 46 golos que aquele argentino com ar melancólico de mapuche marcou na época de 73/74 com a camisola do Sporting Clube de Portugal. Todos os sportinguistas amam Héctor Casimiro Yazalde. Todos têm saudades do Chirola, até os que não o viram jogar. Melhor, têm mais saudades de Yazalde aqueles que nunca o viram jogar, aqueles a quem 46 golos, por não os terem testemunhado, parecem matéria de lendas, histórias de semideuses. Como eu invejava os meus amigos sportinguistas por terem um Yazalde para idolatrar. Não pela montanha de golos (46 é um número um pouco desumano; prefiro 34, como os que Jonas marcou o ano passado, que sugerem a mesma excelência sem perder a humanidade) mas tão-somente por ser argentino.
Por causa de uma infância exposta à influência de Diego Armando Maradona, qualquer jogador argentino despertava em mim uma incontida admiração. Como explicar a alegria de, aos dezasseis anos, ter visto chegar à Luz o “perdigueiro” Claudio Paul Caniggia, o homem que, apenas quatro anos antes, eliminara o Brasil de Sebastião Lazaroni do Mundial? Da sua passagem meteórica (no sentido catastrófico) pelo Benfica, lembro-me de um golo que marcou ao Guimarães, de ter sido expulso pelo bilioso Jorge Coroado num derby contra o Sporting e de pouco mais. Mas o que interessam factos e números se a gratidão de o ver com a camisola do Benfica, aquela sinistra camisola com os dizeres Parmalat e que ainda provoca suores frios a quem se lembra de artistas como Clóvis ou Paulão “Coice de Mula”, continua tão viva e real como no dia em que, à saída da garagem do estádio, ele me deu um autógrafo? Até um jogador apenas suficiente como Mauro Airez, por força da sua nacionalidade e nada mais, me fez acreditar que os pretéritos dias de glória benfiquista estariam prestes a repetir-se.
Como um genuíno porteño, também fui entregando regularmente as minhas esperanças aos novos Maradonas, como Ortega ou Riquelme, inventados pela comunicação social e pela orfandade dos hinchas. Aqui chegados, já não preciso de entrar em pormenores que descrevam os meus sentimentos quando Pablo Aimar e Javier Saviola recuperaram na Luz a velha sociedade do River Plate. Com Di María, Enzo Pérez, Ezequiel Garay e Nico Gaitán já se compunha uma bela e feliz família argentina. Mas o argentino de quem tenho mais saudades é de Eduardo Salvio – esse rapaz brilhante e intermitente como luzinhas de Natal –, sentimento que já se arrasta desde a primeira época dele no Benfica.
Em 2010/2011, a temporada corria mal depois dos 5-0 no Dragão contra o Porto de Villas-Boas, as exibições de slapstick de um tal Roberto e uma daquelas derrotas contra adversários europeus de quinta ordem que se cravam como espinhos na carne dos adeptos. No entanto, dobrado o cabo do ano civil, mister Jesus lá recompôs as tropas e o Benfica, de alma um tanto amassada e a cambalear como alguém saído de um acidente, avançava na Europa dos pequeninos com a arte de uma equipa com o talento coletivo de Maxi, Coentrão, Gaitán, Aimar, Saviola e a exasperante acédia de Óscar Cardozo. O PSV Eindhoven veio à Luz para os quartos-de-final da Liga Europa e foi usado como pano do chão. No final, 4-1, com o bónus de todos os golos terem sido importados da Argentina (dois de Salvio, um de Aimar e outro de Saviola). Uma semana depois, na Holanda, aos vinte e cinco minutos o Benfica já perdia por 2-0 e tinha a eliminatória em risco, em mais uma viagem de montanha-russa dirigida por Jesus. A eliminatória foi ultrapassada, mas o pior tinha acontecido ao minuto sete. Emprestado pelo Atlético Madrid, Salvio lesionou-se e, para ele, a época acabou ali. Para ele e, confesso, para mim. No futebol, há momentos em que sabemos instintivamente que, a partir dali, tudo será diferente. Aconteceu também ao Benfica em 1988, quando, em vésperas de uma final da Taça dos Campeões, Diamantino Miranda, o cérebro da equipa, se lesionou num jogo irrelevante contra o Vitória de Guimarães.
A lesão de Salvio em Eindhoven foi um desses momentos. Sem as descargas eléctricas do extremo argentino, um Benfica cansado de pernas e de cabeça arrastou-se num penoso final de temporada resumido naquela eliminatória contra o Braga de Domingos Paciência. Ninguém sabe se a presença de Salvio teria sido suficiente para alterar o rumo da história. Deixemos o exercício aos historiadores especulativos. O certo é que, sem ele, o Benfica perdeu gás, energia e velocidade. O rolo compressor tinha todas as peças, à excepção do motor de arranque.
Após um ano em Madrid, “Toto” regressou de vez a Lisboa. De vez ou, para ser mais exacto, sempre que as lesões lhe permitem estar em Lisboa na qualidade de Eduardo Antonio Salvio, completo, com todas as letras do nome, sem ossos partidos, microrroturas, tendões rotulianos avariados e toda a sorte de mazelas a que ele, mais do que qualquer outro, parece propenso. É que Salvio, a bem dizer, nunca está entre nós. Aquela mancha vermelha que, em certos domingos bissextos, abençoa o relvado é a personificação de um intervalo de tempo entre duas lesões. Quando, após semanas de treinos condicionados, ele recupera o ritmo, o adepto não sabe se há de ficar feliz pelo que vê em campo ou infeliz pelo que vê no futuro porque, no futuro de Salvio, há sempre, mais grave ou menos grave, uma lesão à espera dele como uma noiva fatal no altar.
Ele, na verdade, é uma aparição, uma intermitência. Ora está, ora não está. Por isso, foi-lhe fácil fazer aquilo que fez ontem ao jogador do Nacional na jogada do primeiro golo do Benfica, uma finta que poderemos baptizar de “fantasminha”. Num instante, Salvio preparava-se para receber a bola de costas para o defesa. Logo a seguir, num momento que até as câmaras de televisão tiveram dificuldade em registar, estava no meio-campo adversário a servir um companheiro. Durante uma fracção de segundo, esteve ausente. Como um fantasma. Como Salvio."
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