"Um jogador marca três golos num jogo e algures numa rede social um adepto do clube desse jogador escreve, com familiaridade carinhosa, “hat-trick do zarolho”. O zarolho é – será necessário dizê-lo? – Luís Miguel Afonso Fernandes que, para efeitos de fama futebolística, se apropriou do nome do desengonçado ponta-de-lança hispano-argentino Juan Antonio Pizzi, que no apogeu da carreira vestiu a camisola do Barça e, no seu ocaso, se arrastou em campo com a do Futebol Clube do Porto.
Este Pizzi transmontano é um jogador apreciável. Há dois anos, quando o Benfica ganhou o tetracampeonato, foi eleito o melhor jogador da Liga, prova de que o seu talento não passa despercebido a todos. O ano passado, uma das causas apontadas para a época sofrível dos encarnados foi o sub-rendimento do número 21, o que significa que a sua importância é maior do que alguns estão dispostos a reconhecer. O homem até festeja os golos batendo continência sabe-se lá a que general invisível e os jornais até lhe chamam, por antonomásia ou ironia, “o comandante”.
Então, por que razão Pizzi é reduzido, ainda que afectuosamente, à sua oblíqua condição de zarolho? Por que razão jogadores de méritos mais duvidosos são perseguidos por cardumes de tubarões e por Pizzi nem sequer um peixinho dourado suspira lá na sua solidão de aquário? (Reconheço que esta informação é falsa. De acordo com os jornais desportivos, Pizzi é cobiçado por clubes como Marselha, Schalke 04 e Bétis. No entanto, não permitirei que este leilão irrisório atrapalhe a minha argumentação.) Por que razão se lançam petições públicas a exigir a convocatória de alguns jeitosos e do abnegado Pizzi ninguém sentiu a falta num Mundial em que o nosso meio-campo foi habitado pelos clones dos jogadores que nos deram o título europeu? Um perna de pau marca três golos e, no dia seguinte, é capa de jornal com as chuteiras na mão e declarações de antigos treinadores, de ex-colegas nos juvenis e de vizinhos a afirmar, com os olhos marejados do álcool, que sempre souberam que ele ia chegar longe. (Verdade seja dita que pelo menos um jornal ouviu Beto Antas, antigo treinador de Pizzi, e um ex-dirigente do Bragança, clube onde o jogador do Benfica começou a carreira, mas resistamos a estes factos menores e prossigamos no nosso caminho.)
Nos últimos anos, o Benfica tem conseguido vender, com relativa facilidade e lucro, quase todos os jogadores que se destacam na equipa. Até tem conseguido vender, por milhões de euros, projectos inacabados de jogadores que não só não se destacaram como nem sequer disputaram qualquer jogo pela equipa principal. Pizzi, esse, continua ali, encalhado e a desencalhar a equipa, invisível quando os seus passes e movimentações tornam fluido o jogo, facilmente perceptível até das cadeiras mais longínquas do terceiro anel quando erra um passe, quando perde uma bola, quando o cansaço lhe tolda a clareza de raciocínio.
A única explicação que me ocorre é a de que Pizzi sofre de um excesso de “pizziedade”, a qualidade dos objectos em que só reparamos nos momentos funestos. Vejamos: o último médio do Benfica a marcar um hat-trick tinha sido o senhor Mário Coluna. Mas o “monstro sagrado” até no nome era vertebral. Pizzi, bem, é Pizzi. Falta-lhe aquilo que alguns jogadores têm e outros, por muito bons que sejam, por muito que se esforcem, não têm. Algo semelhante à aura misteriosa das estrelas de cinema. Para não serem incomodadas pelos fãs, algumas vedetas do mundo do espectáculo reservam quartos de hotel com nomes de personagens dos desenhos animados, vestem-se como sem-abrigo, usam perucas, barbas postiças. Ora, estou em crer que Pizzi não seria importunado por ninguém mesmo que caminhasse pelas ruas com o equipamento do Benfica, mesmo que andasse por aí a cumprimentar as pessoas batendo a continência. Mostrem-me uma criança que, entre uma camisola com o nome de Jonas e outra com o nome de Pizzi, prefira a do transmontano e eu mostro-vos um futuro carteiro.
É isso: jogadores da estirpe de Pizzi são discretos como carteiros. Há os galácticos e há a classe média. Os jogadores que pertencem a esta podem marcar três golos que a terra não treme e os astros seguem o seu curso. Por eles, nenhum clube abre os cordões à bolsa. Nenhum presidente excêntrico entra em loucuras. E eles, indiferentes ao ruído, continuam a entregar cartas, faça chuva ou faça sol, com a mesma diligência de sempre, sabendo que só vão reparar neles no dia em que a carta for parar à caixa errada. De resto, estão condenados a uma invisibilidade de certa forma benigna. A invisibilidade que, hoje em dia, é a única maneira de um bom jogador se manter durante muitos anos num clube português."
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