"“Currente Calamo” é uma locução latina que significa escrever com rapidez, sem se ocupar da beleza, da elegância, da louçania do estilo. No meu caso, tento deste modo, “currente calamo” – criticar! Na palavra douta do Padre Manuel Antunes: “A crítica é um dom. Nasce-se com aptidão interpretativa e judicativa, como se nasce com aptidão criadora e expressiva” (Ao Encontro da Palavra, Livraria Morais Editores, Lisboa, 1960, p. 24). Federico Rampini, correspondente do jorna l italiano La Repubblica, em Nova Iorque (depois de ter trabalhado, com iguais funções, em Paris, Bruxelas, São Francisco e Pequim) declarou à revista LER, em entrevista ainda de grande actualidade (Verão de 2017) que “vivemos na era do caos: a globalização falhou muitas das suas promessas, o aumento das desigualdades tem sido galopante e, para muitos, a resposta certa à incerteza passa pelo populismo e o nacionalismo”. E sublinhou: “Se partirmos do princípio que vivemos numa era em que a hegemonia ocidental está num declínio irreversível, que estamos a assistir ao fim de um período histórico em que o Ocidente era o centro e dominava, para um período em que paulatinamente o centro do mundo se está a deslocar para a Ásia, isto quer dizer que estamos a entrar num período em que temos o declínio de um império mas ainda não temos um novo império e temos vários exemplos de períodos idênticos, ao longo da História, que são caracterizados por instabilidades longo prazo, turbulência, desordem e caos. Não devemos continuar a pensar num regresso à ordem, na restauração de uma ordem e da estabilidade. Penso que isso não deve acontecer. Em vez disso, devíamos treinar as nossas mentes para sobrevivermos da melhor maneira possível, num período muito longo de instabilidade, desordem e caos. Porque é nesse mundo que iremos daque.
Segundo Federico Rampini, a tanto levaram as políticas da austeridade, que se revelaram nocivas à criação de novos empregos e condenaram várias regiões da Europa a uma profunda estagnação. E refere Federico Rampini: “Perdemos uma década. Foi uma década perdida. É possível que as gerações mais jovens nunca venham a recuperar. Perderam dez anos das suas vidas, sem terem um emprego sério”. De facto, ainda hoje esta geração, que apresenta habilitações literárias, graus académicos, publicações de teor universitário e científico que nenhuma outra geração pôde apresentar, sente-se frágil e desprezada, vivendo em democracias que parecem envelhecidas e anémicas. Democracias aliás que, em conluio com um matemático neoliberalismo, ocupam-se do lucro, da exploração, da reificação das pessoas e da trivialização ou destruição da Natureza. E é terrível o vazio axiológico deixado, por este naufrágio das ideologias e por determinados sistemas económico-financeiros – vazio axiológico bem visível, até em algumas das várias formas de prática desportiva, que não se cansam de publicitar que… “o desporto faz bem à saúde”. É evidente que “o desporto faz bem à saúde”, também eu o digo, sem qualquer problema de consciência. Mas não aquela prática, dita “desportiva”, onde o “doping”, a corrupção e a violência imperam; onde o homem-máquina é uma consequência inevitável de um treino e de uma competição, esvaziados daqueles valores que estão na génese do desporto moderno; onde o dirigismo, dito “desportivo”, é corporizado por homens em permanente suspeita de tudo o que fuja aos seus interesses pessoais de vaidade e domínio e que, em todos os que trabalham consigo, nos clubes, vêem acólitos do seu furor orgiástico de manipulação.
José Tolentino Mendonça, no livro, de que é autor, Elogio da Sede (Quetzal Editores. Lisboa, 2018), a síntese dos textos que serviram de guião às suas reflexões no retiro espiritual do Papa, conduzido precisamente por este sacerdote, escritor e universitário português, escreve, demarcando-se sempre (ele que é um dos grandes escritores portugueses da hora presente) da teoria da “arte pela arte”: “a misericórdia é o rosto de Deus” (p. 135). E escreve também: “a misericórdia é um evangelho por descobrir” (p. 136). Mas… o que é a misericórdia? “Perguntamo-nos, muitas vezes, o que é a misericórdia (…). Ela tem de encarnar-se para que a possamos tocar. Misericórdia é compaixão, misericórdia é bondade, misericórdia é perdão, misericórdia é colocar-se no lugar do outro, misericórdia é levar o outro aos ombros, misericórdia é a reconciliação profunda (…). Para concluir: não há misericórdia, sem excesso. Se queremos ser pessoas moderadas, se queremos ser apenas justos, se queremos fazer apenas o que está certo, seremos até boas pessoas, mas não conheceremos o Evangelho da Misericórdia” (p. 132). As “religiões seculares”, corporizadas por algumas ideologias e utopias, que pretendiam fundar a existência humana em novos alicerces morais e políticos, a ditadura do Lucro reduziu-as a bem pouco. Um consumo e um bem-estar, totalmente desinteressados do modo de vida e do nível de vida das periferias, também não permite à nossa hipermodernidade o espaço próprio de uma utopia, com as virtualidades da “misericórdia” que o Evangelho distingue. “Um relatório recente da Organização Mundial de Saúde (OMS) indica que três, em cada dez pessoas, não tem acesso a água potável em casa. Isso perfaz uma impactante multidão, calculada em torno aos 2,1 mil milhões de seres humanos. Se acompanharmos estes indicadores, percebemos que a sede é um gravíssimo problema que atropela a vida de tantos. Basta acrescentar que 844 milhões de pessoas não só não tem água em casa, como lhes falta na vizinhança das suas habitações um serviço básico de água potável” (pp. 137/138).
Costuma dizer-se que “o futebol é a coisa mais importante das coisas pouco importantes”. E, neste caso, quem o diz sou eu que, desde criança, aninhado na ombreira da casa dos meus pais, já me deliciava ao ver passar os jogadores do Belenenses que, lépidos e joviais, seguiam a caminho do Estádio José Manuel Soares (ou das Salésias). Depois, durante muitos anos, continuei a presumir que o futebol, interpretado por praticantes de camisola azul e cruz ao peito, era o espectáculo que mais me entusiasmava, que mais me emocionava até. E cheguei mesmo a escrever que “o desporto, principalmente o futebol, é o fenómeno cultural de maior magia, no mundo contemporâneo”. Ainda hoje posso adiantar, sem receio, que é o futebol o espectáculo que mais aprecio. Mas o futebol, de que tanto gosto, é o que se joga nos relvados, é o futebol de alguns dirigentes, dos jogadores, dos treinadores e de um ou de outro jornalista ou especialista estudiosos. Há um futebol que me penaliza – o futebol das claques, muitas vezes com um linguajar do mais nojento e ordinário que possa supor-se; o futebol de certos dirigentes, recém-chegados ao futebol, onde esperam encontrar poder, fama, notoriedade, dinheiro (se possível, muito) e o aplauso que lhe tributa a “classe dominante” e a fé e o fervor de um número considerável de sócios, filhos de um povo crédulo, simplório e tradicionalista; o futebol de alto risco dos jogos Benfica-Sporting, Sporting-Benfica, Porto-Benfica, Benfica-Porto, Porto-Sporting e Sporting-Porto, alto risco a que levou um clubismo próximo do “panem et circenses” da Velha Roma, o vazio ideológico, a mundialização da sociedade de mercado e as novas formas de alienação e de barbárie. E ao fim de 46 anos de docência, procurando inculcar, nos que me escutavam, que o desporto, actualmente, só se justifica como contra-poder ao poder das taras dominantes - para mim, um “futebol de alto risco”, ou resulta de crassa estupidez, ou está aí ao serviço de escondidos interesses.
Em Janeiro de 1975, num opúsculo da minha autoria, para uma renovação do desporto nacional (Moraes Editores, Lisboa) já eu enfatizava que uma ética do desenvolvimento do desporto exige “que não se esgotem as análises na apresentação de projecções e quantificações numéricas. Decorre duma racionalidade curta o apresentar a forma dum desporto verdadeiramente nacional pelo número elevado de praticantes, ao nível das massas ou das elites. Sendo muito, não é tudo. É preciso ver antes se o desporto se institucionalizou como instrumento, ao serviço da saúde, da educação e da liberdade… do homem! Este é o húmus fecundo que a ética nos aponta, onde o desporto deve nascer, crescer e manter-se. Vitórias, derrotas, campeões olímpicos, recordistas mundiais, desporto-pata-todos, espectáculo desportivo – são conceitos que só a esta luz encontram fim e justificação. Ao contrário, o desporto actual será mais marco inútil e inumano de sociedades injustas. De que brotou, afinal, como o micróbio do fruto apodrecido” (p. 104). Dois anos depois, também em livro da minha autoria, a prática e a educação física, já eu aditava a tudo o que tinha escrito, a este propósito: “Ciência do Movimento Humano, ou seja, Ciência do Homem, em que os conceitos de coordenação motora, de ideo-motricidade, de esquema corporal, de motivação, de aprendizagem, de treino, de “forma”, de habilidade, de hábito, de táctica, de estratégia, etc., etc. – são também problemas filosóficos, em que o corpo nos aparece como concretização espácio-temporal de uma sociedade, duma visão do Mundo, do Homem e da Vida” (p. 59). Há mais de 40 anos, estimulado pela Filosofia e pelo que aprendera com os alunos e professores do INEF, já eu me separava da vulgaridade e mesmidade de uma certa crítica desportiva. É que, para mim, há muitos anos já, o desporto não está acima da pessoa humana, nem dos seus superiores interesses. O desporto não existe à parte, ou acima da sociedade que o gerou.
Peço desculpa, por fim, do meu “currente calamo”. É que também o tema é merecedor de muito mais…"
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