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segunda-feira, 23 de julho de 2018

A grande telenovela de verão

"A chamada silly season alimenta os jornais desportivos com um fluxo interminável de jogadores que fazem parte de listas, são alvos, estão a ser seguidos por clubes. É a ficção estival do futebol

Tão certo como a primavera trazer as andorinhas, o verão desata no jornalismo desportivo uma febre de tal dimensão que as regras jornalísticas são mais ou menos esquecidas, abrindo as páginas dos jornais à ficção. É a temporada das transferências, um fluxo contínuo de invenção, especulação e notícias criado para superar o facto de o futebol estar de férias e nos deixar sem erros de arbitragem para analisar até à exaustão.
O grande exercício para o leitor curtido de verões de especulação é adivinhar nessa rocambolesca telenovela estival que negócios irão verdadeiramente concretizar-se e quais são mera invenção promovida por empresários, treinadores, clubes.
Embora a mais lembrada capa de especulação jornalística dos últimos anos tenha surgido fora de época, durante o mercado de inverno (mais curto e menos telenovelístico) –, a célebre transferência do central Neto para o Benfica, a quem “A Bola” entregou a manchete no dia em que Cristiano Ronaldo ganhava a segunda bola de ouro, com a particularidade de, quatro anos e meio depois, a mesma continuar sem acontecer), é um caso exemplar desta ficção jornalística de que falamos.
A grande época das transferências do futebol é semelhante às corridas do ouro, há muita conversa e excesso de pirite (o ouro dos tolos), obrigando o leitor a transformar-se em avaliador, encarregado de separar o material verdadeiro daquele que tem apenas brilho metálico e cor amarelo-dourada sem qualquer valor.
A questão chegou a um ponto em que os jornais criaram um novo género, o do comentário jornalístico das “notícias” de transferências. O “The Guardian” deu-lhe o nome de “Rumour Mill” e haverá melhor definição do que “moinho dos rumores” para este constante agitar dos cortinados do mercado? A energia autoproduzida pelo mercado de transferências resolvia-nos parte do problema de dependência dos combustíveis fósseis, tal a capacidade de criar ventos de especulação a partir de quase nada.
Alguns jogadores, como Cristiano Ronaldo (e o seu empresário Jorge Mendes, senhor todo poderoso da gestão especulativa em proveito próprio), esmeraram-se na arte de aproveitar esses ventos. Nada como pôr a circular um eventual interesse de outro clube num jogador importante para justificar a melhoria do seu contrato.
O futebol é um negócio e as notícias falsas de transferências fazem parte desse negócio, como quem já jogou “Football Manager” sabe muito bem. A relação entre a notícia de transferência e o jornalismo é como a relação do cinema de ficção com a realidade, por vezes está baseado numa história verídica.
Com tantos milhares de milhões de euros envolvidos neste negócio, a quantidade de interesses em jogo, a multiplicação de empresários a precisar de concretizar negócios para receberem a sua comissão, a ânsia de novidade que cada clube tem de gerir, implicando um número de saídas e entradas de jogadores por ano, para vender camisolas e introduzir a componente de expectativa na nova época, não admira que o jornalismo desportivo acabe por se tornar protagonista e vítima consentida deste confronto de interesses.
Desde que a chamada lei Bosman fez cair por terra a protecção do mercado, que permitia aos clubes exercer o poder sobre o contrato dos seus jogadores e mantê-los no clube como queriam e só vender os seus passes se o desejassem, o futebolista passou a ter mais poder (e a conseguir uma parte maior do bolo financeiro gerado pela modalidade) para gerir a carreira em função dos seus interesses.
A determinada altura ainda se escrevia muito sobre a falta de identificação das equipas por causa de serem tantos os estrangeiros, que nem mesmo o poder de certas camisolas conseguiria combater a constante mudança dos corpos que as vestiam. Se no passado, era comum escalar uma equipa com vários jogadores que tinham feito o percurso no clube, hoje, o vício do mercado, faz do futebolista da casa, na maioria dos emblemas, excepção num mar de constantes mudanças. Tal vai a coisa, que as instâncias desportivas limitaram legalmente a dois o número de clubes que um jogador pode representar numa época e assim evitar maiores promiscuidades.
Há jogadores que acumulam 10, 15, 20 clubes na sua carreira, não ficando o tempo suficiente numa equipa para deixar algo mais que uma vaga memória. Não serão grandes ídolos de multidões, mas num mercado que pode ser cruel para os jogadores medianos, fazem pela vida e, entre comissões, prémios de assinatura e um que outro aumento de salário, lá vão conseguindo a acumulação primitiva de capital que lhes permite garantir a vida toda que terão depois do físico já não lhes permitir andanças futebolísticas.
É também o único momento da época desportiva (tirando as grandes jornadas épicas da taça) em que um jogador do Mafra, Farense ou Famalicão terá as mesmas duas ou três linhas no espaço do mercado que o interesse do Barcelona por Rabiot, do PSG, ou o do Atlético de Madrid por Olivier Giroud, do Chelsea. Nesse aspecto, a constância do fluxo torna-o mais democrático e, como a ficção aumenta à medida que se sobe na cadeia alimentar, muitas vezes são as únicas notícias realmente comprovadas desses espaços."

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