"Às vezes perguntou-me o que seria, agora, Eusébio e, por exemplo, a sua jogada contra a Coreia do Norte
1. Está-se a jogar a última e decisiva jornada da fase de grupos do Mundial. Bom será que a qualidade e emoção dos jogos aumentem, como costuma acontecer jogo que se avizinham as fases críticas da competição. É que, para mim, a grande maioria dos jogos têm sido mais do mesmo. Aborrecidos, monótonos, cinzentões, jogados quase como quem está a fazer um grande frete e decorridos com a evidência do cansaço físico e mental de jogadores que têm mais de 50 partidas nas pernas.
A isto acresce, na minha opinião, um modelo de jogo jogado que não entusiasma. Jogos de tácticas aprisionantes, de receios mútuos que levam a uma anulação recíproca, muito palavreado à volta de quase nada, passes para o lado e para trás até dizer farta, mais preocupação em defender do que em atacar, muita poluição mental com técnicos e equipas agrilhoados pelo mediatismo que está para além das quatro linhas. Já lá vai o tempo em que havia a liberdade de iniciativa, em que havia jogadores que jogavam verticalmente, olhos na baliza, em que não se falava do pavor de errar, em que o chuto era mais para construir do que para destruir. Estamos num tempo de futebol matematizado em algoritmos tácticos (e estratégicos, como também nos dizem, porém quase sempre em absoluta confusão de conceitos), em que os jogadores, na sua quase totalidade, vivem capturados pela mecânica colectiva que lhes impede a liberdade criativa.
Às vezes, perguntou-me o que seria, agora, Eusébio e, por exemplo, a sua jogada contra a Coreia do Norte começando no meio-campo e acabando ceifado na grande área, com penálti assinalado e convertido. Ou a estética criadora de Johan Cruyff. Ou o virtuosismo pragmático de Muller. Ou o sambismo de Garrincha e a fantasia competente de Pelé. Ou o centro de gravidade desafiado por Maradona. Ou a clarividência inteligente de Bobby Charlton e Franz Beckenbauer. Ou a laranja mecânica. Ou o escrete de 1982. Ou a Hungria de Puskas, Czibor e Kocsis dos anos cinquenta. Ou... etc.
É certo que a regra não tem impedido a excepção. Houve alguns jogos (mais na 2.ª jornada) que valeu a pena serem vistos. Houve até algumas jogadas e golos de categoria. E livres gloriosamente marcados, sem receio de errarem, como o de Ronaldo ou de Toni Kroos. E tudo isto, com frases exclamativas de «golo do outro mundo», «momento épico de futebol», «jogada antológica». Até entendo esta excrescência superlativa, porque vão sendo momentos cada vez mais esparsos no futebol de laboratório que ora se espalha virulentamente. No entanto, a adjectivação hiperbolizada pode iludir, mas não apaga a naturalidade de outros futebóis de antes, mais virtuosos, mais excitantes, mais livres.
2. Há um aspecto que, todavia, tem sido assinalável nesta primeira fase: a da revolta possível dos países sem tradição vitoriosa e vistos, em geral, como os David contra os consagrados Golias. Qualquer jogo contra nações como Irão, Marrocos, Costa Rica, Islândia, Senegal, Japão e mesmo Suiíça eram aprioristicamente olhados como favas contadas. A razão fundamental para esta aproximação reside na globalização do futebol. A maioria desses países da parte de baixo do ranking mundial têm os seus mais representativos atletas a competir nas principais ligas, em especial nas europeias. O hiato entre o futebol doméstico e o que é jogado pelas selecções desses países continua, porém, a ser evidente, ainda que seja expectável que estes fenómenos de internacionalização total venham a criar efeitos positivos, mesmo a nível mais regional ou local.
3. Nos primeiros 32 jogos do Mundial, houve 232 remates enquadrados com as balizas, o que significa uma média de apenas 7,25 por jogo, não atingindo sequer os 4 pontapés por equipa e por jogo. Em termos médios para cada equipa chutar uma vez ao lavo, com ou sem golo, foram precisos à volta de 26 minutos. Coisa rara, portanto, que provoca sonolência, a não ser que estejamos directamente envolvidos no apoio a uma equipa. Partindo do princípio que a grande maioria dos melhores profissionais do mundo estão a competir, temos uma ideia de quão maçador e em torno (estéril) do meio-campo e sem profundidade se está a jogar. Curioso é o facto de Portugal, agora já com 3 jogos, ser o mais eficaz a converter estes remates em golos, ainda que tenha sido até agora das que menos rematou à baliza: 3 jogos, 9 remates enquadrados (2 de penálti) e 5 golos, 3 dos quais de bola parada!
4. Por vezes, ponho-me a imaginar quanta tinta e quanta imagem já haveria por cá com os erros de arbitragem e também do VAR. Mas imagino que seriam repetições até nausear e discussões inflamadas, curiosamente não tanto nas televisões dedicadas ao desporto, mas sobretudo na SIC Futebol, perdão Notícias, TVI 2-4, perdão 24, e na omnipresente e prenhe de alertas por dá cá aquela palha, CMTV.
Mas, agora com a cientificidade pretensamente quase infalível dos VAR, julgaria eu que, na montra mundial do futebol, já não houvesse lugar a erros crassos. Todavia, ainda a procissão vai no adro, e já muito para contar. Penaltis não assinalados em que o VAR se defende argumentando que não tem 100% da certeza da infracção, apenas tem 99%. Cartões vermelhos evidentes em que o subjectivismo entre uma coisa e outra semelhante inibe a indicação da expulsão ao árbitro de campo. Golos precedidos de faltas grosseiras, que grosseiramente o VAR não avaliou. Apenas nos foras-de-jogo, o VAR tem sido rigorosamente certo e mal seria que não fosse tratando-se, aqui, de uma simples constatação físico-geométrica.
Já agora, que alívio quando o árbitro apenas mostrou amarelo a Ronaldo, que correu o sério risco de ser expulso e não jogar nos oitavos-de-final!
5. Das partes e fracções dos jogos que vou vendo, não consigo prognosticar quem poderá vir a ser o campeão. Tenho visto momentos bons, mas espaçados, de equipas consideradas favoritas, mas só isso. Há países que têm excedido as minhas expectativas, tais como o México, a Croácia e até a mais sorumbática Suíça. Mas, no fim, creio que tudo andará à volta dos suspeitos do costume. Futebol por futebol, ainda apostaria num trio: Alemanha, Brasil e Espanha. No momento em que escrevo não sei se a Argentina conseguirá o quase milagre de se apurar para os oitavos-de-final. Se tal acontecer, coloco numa segunda faixa outras três equipas: França, Argentina e Portugal. E como outsiders, que, todavia, não me parece que aguentem até ao fim, poria outras três equipas: a Croácia, a Bélgica e a Inglaterra. Já na Rússia deverá sair aos pés da Espanha e espero que Portugal elimine o surpreendente Uruguai.
6. Percebo algumas das razões, designadamente logísticas e operacionais, que podem justificar o sorteio conhecido ab initio dos encontros depois da fase de grupos. Mas discordo dessa prática que até pode induzir alguma batota sobretudo na 3.ª jornada. É que estes jogos são disputados em dias diferentes e acontece que haverá jogos com duas equipas já qualificadas (ou quase) sabendo, de antemão, quem são os países que lhes calharão nos oitavos-de-final, dependendo apenas de ficarem em 1.º ou 2.º do grupo. E até podem achar que, em tese, é melhor ficar em 2.º porque entendem que o já apurado adversário de outro grupo e classificado em 1.º lugar é mais acessível. Além de que os sorteios sucessivos dão uma imprevisibilidade mais excitante à continuação da competição.
7. Imagino o que poderá vir a ser a primeira fase do Mundial no continente norte-americano em 2026, se for aprovado o alargamento para 48 equipas, em vez das actuais 32. Vai ser um fartote de jogos desinteressantes, onde, para chegar ao tal número de 48, já antevejo Lituânia, Malta, Chipre, Vietname, Maldivas, Venezuela e Burkina Faso, entre muitos outros, a sonhar lá estarem. Enfim, depois do inacreditável Mundial 2022 a jogar-se no Qatar (provavelmente em época natalícia, porque o climaticamente impossível no Verão!), pode estar iminente uma batelada de jogos e, claro está, de mais rios de dinheiro que é, sobretudo, o que faz correr a FIFA e seus muchachos e patrocinadores.
Contraluz
- 'Happy End': Sporting
Terminou uma fase muito crítica do clube, ainda que com sequelas que vão exigir tempo, transparência, sensatez e coragem para serem debeladas. Tempo difícil para uma intercalar Comissão de Gestão que fará o seu trabalho num período crítico de planeamento da época. A bem do futebol, foi bom ouvir Artur Torres Pereira num discurso sensato, urbano e prudente.
- Política: Kosovo
Dois jogadores suíços (talvez os melhores), afinal só são helvéticos na forma. Kosovares e/ou albaneses de coração, bem poderiam ter evitado molestar a outra equipa (Sérvia) com gestos gratuitos e políticos sobre o diferendo entre a Sérvia e a sua antiga província do Kosovo. É caso para perguntar porque jogam então pela Suíça e não pelo Kosovo? A resposta é óbvia: não estariam no Mundial. Carteira na Suíça, coração nos Balcãs... com a primeira a falar mais alto e o desplante a gesticular mais despudoradamente."
Bagão Félix, in A Bola
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