"Vítor Baptista recusou-se a jogar. Mortimore, depois do 0-0 de Lisboa, dedicou-se a defender em Moscovo, outro 0-0. Tudo a zero até que Bento, à sua maneira, defendeu um penálti e marcou aquele, decisivo, que resolveu a eliminatória a favor do Benfica contra o Torpedo.
Porque estou na Rússia, embrenhado até aos joelhos em mais uma fase final de um Campeonato do Mundo, algo que me vai fazendo velho de quatro em quatro anos, à medida que eles se vão multiplicando na minha vida a uma velocidade que me pareceu em tempos, inimaginável, nada como escrever sobre Moscovo e uma célebre visita do Benfica à que era, então, capital da orgulhosa União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Vamos para o dia do acontecimento: 28 de Setembro de 1977.
O Benfica tinha feito um mau resultado em casa, na primeira mão da primeira eliminatória da Taça dos Campeões Europeus. 0-0 com o Torpedo de Moscovo.
O Torpedo era uma daquelas equipas chatas como a potassa, construída como um relógio que nunca se atrasa e nunca se adianta, peça de mecânica praticamente infalível.
É verdade que raramente atacava. Só mesmo pela certa, quando tinha na retaguarda gente suficiente para se manter a fancos de qualquer percalço.
Eu estive na Luz e vi. Ou, melhor, pouco vi.
Porque o jogo foi pastoso e timorato. Quase obrigatoriamente zero-a-zero, noves fora, zero.
Mas vamos até Moscovo, essa cidade extraordinária na qual agora me encontro.
Aqui, as coisas mudaram de figura.
O brilho de Bento
Todos sabemos que John Mortimore, ao contrário da grande maioria dos seus compatriotas, era um treinador de tendências poucos aventureiras.
Se o Torpedo fizera, na Luz, um bloco impenetrável, assim o fez o Benfica na antiga URSS. Metido nas suas tamanquinhas, entregando à dupla de centrais, Humbero Coelho e Eurico, a responsabilidade de protegerem Bento, o jogo não tardaria a arrastar-se: feio, lento, entediante.
O inglês que comandava a equipa de águia ao peito era conservador até à protérvia. Ficou, ficou e deixou-se ir ficando.
Sem que, da outra parte, houvesse imaginação suficiente para contornar o bloco de betão armado encarnado.
A coisa como que emperrou: não caía nem para um lado nem para o outro.
Na véspera, Vítor Baptista fizera das suas. Deu-se como doente, tinha um jogo da selecção em breve, necessitava de se poupar, de não correr riscos, jogar naquele ambiente gelado que rondava os zero graus só iria piorar a sua situação física, segundo ele mais do que periclitante.
E assim decidiu e assim o fez: não jogou.
E como precisava o Benfica do seu avançado para ir à procura do golo que resolvesse o assunto!
Não houve Vítor Baptista e ponto final. Ou pior: não houve Vítor Baptista e houve um processo disciplinar posto a andar pelo presidente Ferreira Quemado.
Entretanto, no campo, o zero-a-zero igual a zero da primeira mão tinha a sua segunda versão.
Noventa minutos em branco mais trinta de trabalhos forçados.
Penáltis: não havia outra forma de resolver a contenda.
Pietra marca o primeiro.
Bento defende o pontapé de Iurine.
José Luís não falha.
Nikonov atira para fora.
Chalana é altivo: 3-0.
Balenkov responde: 1-3.
E então, pelo meio de todo aquele cinzentismo, explodiu o brilhantismo de Bento.
Bigode farto, meão de altura, meio atarracado, braços que pareciam grandes demais, quase chegando aos joelhos.
Bento, Bento, e outra vez Bento.
Vai ele próprio bater o penálti decisivo. Corre para a bola com o à-vontade de um avançado de muitas batalhas, chuta forte, nem precisa de olhar para a baliza de Zarapin.
Ele sabe que a decisão foi sua.
O gesto foi seu."
Afonso de Melo, in O Benfica
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