"Um livro novo sobre Béla Guttmann traz-nos a memória do judeu que conquistou a Europa e levou o Benfica ao topo do mundo. E que disse, após a sua segunda saída da Luz: 'Estes olhos, caro senhor, que há anos não conhecem lágrimas, vertem-nas há várias noites. Se alguma vez tiver um grande amor, nunca se atreva a voltar'.
Soa a filme de Hitchock, com Leslie Banks e Edna Best, e não fica muito longe do estilo inconfundível de suspense.
Falo de Béla Guttmann.
Ou, melhor, falo de um livro sobre Béla Guttmann recentemente editado em Portugal. Chama-se De Sobrevivente do Holocausto a Glória do Benfica. O autor é David Bolchover, autor e comentarista, colaborador do The Times, de Londres, figura frequentemente presente na BBC.
O livro lê-se de uma penada, como é hábito dizê-lo.
Começo pelo pior. Erros terríveis! Erros terríveis, como diria o Conselheiro Gama Torres do divino Eça.
Falando da meia-final da Taça do Campeões entre o Tottenham e o Benfica: 'O jovem guarda-redes Jimmy Greaves, recém-contratado e futura lenda do futebol inglês que faria a sua estreia naquela meia-final' (???????)
Só pode ser distracção da grossa ou asneira grotesca transformar Greaves num guarda-redes, ele que foi um dos grandes avançados da história do futebol mundial. Já para não acrescentar que o bom do Jummy já tinha passado pelo Chelsea e pelo AC Milan antes de se transformar no primeiro jogador do mundo a custar cem mil libras.
Bem como descrever os golos de Coluna 'com o seu pé direito, menos hábil' (menos hábil, o pé direito de Coluna????) e outras distracções do género que metem a habitual confusão daquela jornada final do campeonato com Benfica - CUF e Torreense - FC Porto, trocando a verdade dos factos - quem jogou longos minutos contra apenas nove adversários foi o FC Porto em Torres Vedras e não o Benfica na Luz.
Agora que sublinhei duas ou três coisas que diminuem a qualidade global da obra, sublinho igualmente o profundo conhecimento que o autor revela sobre a importância dos judeus no desenvolvimento do futebol mundial no período entre as duas Grandes Guerras e que se seguiu a 1945.
Guttmann era, como sabem, judeu. Foi um jogador de enorme qualidade no Hakoah de Viena (Hakoah significa força ou poder) que espalhou por todo o mundo, somando êxitos sucessivos e os aplausos dos adeptos judeus onde quer que jogassem.
O Holocausto
Há um período da vida de Béla Guttmann (nascido Guttman, mas foi-lhe acrescentado o segundo n no final para ganhar um toque germânico) que perdido em mistério. Sabe-se que toda a sua família foi dizimada pelos nazis, mas o filho de Ábrahám Guttman, que viria a fundar juntamente com a sua mulher, Eszter, uma escola de dança em Budapeste, na qual o Béla se formou como professor, sobreviveu à devastação do seu país e ao Holocausto. Durante anos terá vivido num sótão sujo dos arredores da capital húngara, fugindo à deportação, à humilhação dos trabalhos forçados e, muito provavelmente, à morte.
Isso ajudou a formar a sua personalidade como treinador: 'Agressivo, polémico, desbocado, desconfiado, itinerante, iconoclasta, impulsivo...', escreve Bolchover. 'Gutmann era o típico forasteiro, consciente de que nunca seria bem aceite pelo sistema, mas indiferente ao juízo que faziam dele. O seu caminho, traçava-o ele custasse o que custasse...'
Gutmann ficará como muito poucos marcado a ferro e fogo na história do Benfica.
Veio para a Luz em 1959, após ter sido campeão no FC Porto, e ficou até 1962 - o seu período mais longo num só clube. Raramente ficava mais do que uma época. Ganhou duas Taças dos Campeões, destruiu o mito de invencibilidade do Real Madrid, transformou o futebol de um pequenino país de um cantinho ocidental da Europa, saiu zangado, voltou rico, em 1965, voltou a sair zangado, morreu praticamente na ruína por via de todos os seus confrontos insistentes e de um vício incontrolável pelo jogo.
Apesar daqueles pequenos erros (arrepiantes para quem gosta de futebol e aos quais se somam mais uma meia dúzia do mesmo género), o livro de David Bolchover vale a pena. Tem referências históricas impressionantes e é uma investigação profunda levada a cabo sobre o treinador que levou o Benfica ao topo do mundo.
'Béla Gutmann foi o judeu que conquistou a Europa!'
E, sobre a sua segunda saída do Benfica, ecoam as palavras do próprio Guttmann. 'Estes olhos, caro senhor, que há anos não conhecem lágrimas vertem-nas há várias noites. Se alguma vez tiver um grande amor, nunca se atreva a voltar'.
Só que Guttmann, na verdade, não precisava de voltar ao Benfica. Fez sempre parte dele desde o primeiro dia em que entrou na Luz."
Afonso de Melo, in O Benfica
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!