"Dez anos de passaram sobre a morte de Bento, o homem da coragem lendária. Figura quixotesca de bigode descaído, de cabelo longo e mãos enormes que não pareciam ser dele.
Bento já morreu há dez anos. Manuel Galrinho Bento. Parece que, quando a mulher de Nelson Rodrigues o avisou da morte súbita do romancista Guimarães Rosa, o cronista exclamou confuso: 'Mas morreu como, se estava vivo?'
É a única coisa requerida para quem tem de morrer. E somos todos.
Bento estava vivo. Vivissimo. Dificilmente alguém poderia estar tão vivo em campo, tão atento, tão seguro de si próprio. Era o exemplo acabado da coragem. Não se incomodava com a sua estatura meã, um metro e setenta e quatro centímetros, assim por extenso, toda a sua carreira foi por extenso. Barreirense, Benfica, Selecção Nacional. Lembrei-me, de repente, de um jogo de Portugal na Escócia. Os minutos passavam devagar, tão devagar. Para os portugueses, esclareça-se. Para os escoceses, os minutos pareciam que voavam. Duas concepções antagónicas do tempo. Os minutos de Bento, nesse jogo, foram infinitos. Não tinha mãos a medir. As bolas vinham e iam e continuavam a vir. E ele às vezes querendo-as, recebendo-as nos braços, afagando-as, acarinhando-as com as mãos, ás vezes desprezando-as, socando-as para longe como se fosse movido pelo ódio, empurrando-as para fora das linhas, e logo esperando por elas outra e outra vez. Lembro-me de Estugarda. O meu amigo, irmão, José Vidal estava lá como fotógrafo, atrás da baliza portuguesa. Gritava: 'Aguenta, Manel!' E o Bento cansado, aflito, sujeito às cargas de infantaria dos alemães, que digo eu?, cargas de cavalaria, cargas de tanques com lagartas, uma onda germânica invadindo tudo, camisolas brancas multiplicadas até ao infinito. 'Aguenta, Manuel!' O Bento respondia, por cima do ombro, impedido de estar desatento por um micronésimo de segundo que fosse: 'Já não posso mais...' Mas podia. Podia tudo. Portugal ganhou, Carlos Manuel fez um golo irrepetível, e o Bento desmanchava em defesas sublimes o seu corpo pequeno de homem da Golegã, terra ribatejana onde mandam os cavalos.
Bento devia escrever-se com maiúsculas: BENTO! E levar um ponto de exclamação no fim.
Não houve outro igual a ele e, no entanto, tantos foram enormes na baliza do Benfica.
Havia nele a figura quixotesca do bigode descaído, do cabelo longo, das mãos enormes que não pareciam ser dele, talvez algum deus do futebol lhas emprestasse no início de cada jogo.
Um golo único!
Lembro-me de Bento tantas vezes, que me lembro de o ver marcar um golo, e não foi o do penalty em Moscovo, contra o Torpedo, quando se tornou o capitão da neve, o homem que repelia os frios que vinham das estepes e o frio que fica por dentro sempre que um guarda-redes se estaca no momento do penalty. Bento sem angústia, esse. Bola certeira, Benfica apurado.
Mas eu falo de outro golo, era miúdo no Campo Dom Manuel de Melo, no Barreiro - sempre achei graça ao facto de um clube operário como o Barreirense ter um campo com Dom no nome. Foi contra a Académica, e ao Melo, salvo todos os erros de uma memória antiga. Bento chutou de lá da sua baliza, lá da sua grande área, a bola veio voando, voando, levada pelo vento ou por alguma ave matreira, brincalhona, depois caindo, caindo, caindo, dentro da baliza dos estudantes vestidos de negro como corvos. Até aí, Benfica foi único. Único golo. Golo único!
Lembro-me de Bento entre a alegria e a tristeza. Chovendo na Luz em noite de trovões, relâmpagos vermelhos de um Liverpool impressionante. E, mais tarde, contra o Liverpool ainda: a bola passando-lhe por debaixo das pernas, Rush e Dalglish de braços no ar, ele incrédulo de braços ao longo do corpo, a água caía do céu e tornava-lhe a figura ainda mais inconfundível, os bigodes molhados, o cabelo escorrendo água, as mãos enormes que pareciam não saber o que fazer no prolongamento do fracasso.
E a coragem? A lendária coragem de Bento!
Ele que vinha lá do Barreiro na camioneta de vender o peixe, passando aqui e ali para dar boleia aos colegas, logo mal o sol deitava para fora da noite as antenas de luz.
Uma vez, em Famalicão, voou para os pés de Reinaldo, que depois seria seu colega no Benfica. Reinaldo era grande, negro e luzidio, a cabeça de Bento não fugiu da sua bota, dos pitons que arrastaram pela testa, abrindo um sulco enorme de sangue e pele. Nessa semana, Bento levou tantos pontos, que, sozinho, liderava o campeonato. Seria campeão. Foi sempre um campeão, até nas derrotas, até no maldito dia em que partiu uma perna nos buracos de um relvado infame no interior do México em 1986.
Um metro de setenta e quatro centímetros de tamanho. Isso por fora. Por dentro, o Benfica era enorme. Quase infinito. Do tamanho do coração que o atraiçoou aos 58 anos, 1 de Março, decorrem agora dez anos certos.
Bento não agarrou a morte de frente como um pegador de touros lá da sua Golegã. Recebeu-a de peito aberto. O peito onde o coração deixou de bater."
Afonso de Melo, in O Benfica
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