"Um fora de jogo de um centímetro já basta para detonar a emoção e estragar o espectáculo. Em que momento o jogo virou 'nonsense'? Quando foi que perdeu a alma?
Um fora de jogo de um centímetro — e tanto poderia ser de cinco ou dez, que me levaria ao mesmo. A mão na bola, ou melhor a bola na mão, à queima-roupa, que vale penálti. Um futebol que já não avalia a intenção, o desequilíbrio, a escorregadela, o ritmo, o contexto e todos os pisões são amarelos, exceto os que descarregam nas articulações e valem o vermelho direto.
A lei é a lei, as recomendações são mais do que recomendações e o bom senso já não é mais do que conceito inexistente para esse Big Brother seletivo, que avalia dois ou três momentos e fecha os olhos a outros mil, nem sempre menos importantes. É o tal do protocolo. O futebol ultramoderno que, por comparação, nos deixa sim extasiados com recordações em technicolor de um outro — cheio de imperfeições e magia — que vivemos e revivemos mais intensamente.
Percebo que para os mais novos seja menos relevante, porém ainda sou do tempo do aguaceiro de papelinhos sobre o relvado do Monumental e de Zico e Sócrates a afundarem-se no Sarriá, e tenho quase a certeza de que não haveria Golo do Século sem a Mão de Deus. Maradona não seria Maradona, e acredito que isso me teria tornado, pelo menos a mim — se não mesmo a todos nós —, uma pessoa pior.
No futebol de hoje nada é definitivo até lhe tirarem a prova dos 9, o quadrado perfeito, graças a uma raiz quadrada exata. Tornou-se um espetáculo de dúvida. O árbitro não apita, o auxiliar mantém em baixo a bandeira diante do comboio desgovernado que lhe passa à frente, espera-se pela imagem que os desresponsabilizará a todos. Os adeptos gritam golo a medo, temendo o anticlímax e o regresso ao passado. Os jogadores festejam o alívio depois de arrefecer, à espera de uma decisão que os confirme. Sobretudo por cá. Porque se tenta ver tudo e, por vezes, não se vê nada. E nem sempre se reúnem os elementos de prova corretos para que se tome a melhor de todas as decisões.
O golo passou, perdeu lugar de protagonista. Celebra-se hoje a decisão e não o remate. Ainda se torna mais importante o resultado neste mundo resultadista, porque a beleza, se houve, já não é relevante. A solenidade, com banda sonora de Champions para acentuar o momento, está no apontar para a marca ou no ligar do microfone colado com tape junto ao rosto, no play pressionado nas costas para a telegráfica sentença, decorada e simplificada ao máximo, desde aquele cada vez mais inócuo após revisão.
Há sempre alguém que, de tempos a tempos, atira em jeito de afinal quem é que tinha razão? que hoje ninguém pode negar que o VAR é absolutamente necessário. Eu, como sempre vivi bem sem ele, digo que depende das expetativas. Nunca achei que iria resolver todos os problemas do mundo ou sequer trazer a tão romantizada verdade desportiva, seja lá o que isso for, como muitos bradaram aos céus. Só que ninguém o quis estranhar para não dar parte fraca, convictos todos estavam de que o novo Santo Graal iria ser-lhes sem dúvida favorável — e assim o entranhámos ainda mais depressa. Aceitámos um jogo cada vez menos humano. Terá sido o nosso maior erro.
É um futebol higienizado.
A cada paragem, o jogo morre um pouco. E nós, com ele. O nosso está moribundo há muito, por culpa da incompetência de quem o lidera e de um Estado que, seja qual for a sua cor, nunca quis saber. Os pensadores deste país entendem que, apesar de mover mais gente do que tudo o resto, é algo menor. O tal ópio do povo. Serve apenas de bandeira para a fotografia junto dos vencedores, como tantos ditadores aproveitaram sem qualquer pudor ao virar de cada página da História. O novo Coliseu, os novos gladiadores. Quando este cair, Roma cairá. Só em Portugal se acha que uma parte de Lisboa permanecerá independentemente da outra, ou o Porto prevalecerá num país em ruínas.
É o jogo do contrassenso. A melhoria dos relvados acabou com os heróis da lama e muitos momentos épicos. À exceção de uns quantos espalhados pelo planeta, os novos estádios são palco para ópera e não para um 12.º jogador entrar em campo e decidir ou para fazer abanar as fundações de uma bancada, e por cá esse tem mais que fazer do que ir ao estádio. O excesso de oferta matou o interesse. Os nossos filhos veem a Premier League, o Barcelona e o Real Madrid, a Champions e nunca a Liga Europa. Alguns nem sabem o que é a Liga Conferência e poucos mais além destes querem saber.
O futebol moderno tornou-se uma sucessão de frames, montagem fria em que se perde a trama e com ela os heróis. Uma soma de segundos analisados em câmara lenta que já não contam uma história, apenas procuram culpados. O erro, que era humano e portanto belo, passou a ser tratado como grave falha do sistema, que coloca tudo em causa. E os jogos, antes cheios de suor e nervo, parecem agora experiências de laboratório: os corpos medidos, o tempo vigiado, a emoção editada.
Jogar certo tornou-se mais importante do que jogar bem porque não há bom senso. Que importância têm dez centímetros num fora de jogo, quando tantas e tantas vezes não garantem qualquer vantagem. Ou o que ganha o defesa quando o avançado foge da baliza e lhe atira a bola contra o braço, a curta distância, com o árbitro a alegar que não é natural uma posição que tem tudo de normal. Todos os que jogam o sabem. Mas não é certo! Regra é regra, repete-se. E jogar certo é o que importa. Mesmo que o improviso, o risco, a centelha façam mais pelo espetáculo do que estar tudo nos conformes. Desde que no limite do bom senso.
O futebol quis tornar-se ciência exata, em nome dos milhões que se movimentam, e esqueceu-se de que sempre enriqueceu a ser arte imprecisa. Talvez um dia, quando nos apercebermos de que a perfeição é inimiga da paixão, se volte a festejar antes da revisão. Que o grito volte a sair sem pedir autorização ao ecrã, sem a dúvida que o congela. Até lá, viveremos neste simulacro — nem por isso limpo de erros, mas desprovido de alma. O futebol, o verdadeiro, continua à espera de quem o devolva à terra. Com as mãos sujas de barro. Como sempre foi."

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