"Os adeptos do futebol europeu ouvem frequentemente falar de clubes sob investigação ou alvo de sanções por parte da UEFA, no âmbito do chamado fair play financeiro. Mas o que está realmente em causa quando a gestão financeira de um clube é colocada sob escrutínio pela UEFA?
A entrada em vigor do Regulamento de Licenciamento e Sustentabilidade Financeira da UEFA marca um ponto de viragem no enquadramento jurídico-financeiro do futebol europeu. O que começou, em 2010, como o projeto de Financial Fair Play (FFP), transformou-se, desde 2022, num sistema sancionatório de compliance, em que a gestão responsável é tão determinante como o desempenho dentro das quatro linhas.
Estas normas constituem obrigações jurídicas de natureza regulatória, integradas num licenciamento obrigatório que condiciona o direito de participação nas competições europeias. A obtenção e manutenção da licença da UEFA depende da conformidade integral com os critérios de licenciamento e de sustentabilidade.
A UEFA como reguladora do ecossistema económico do futebol europeu
Em termos práticos, o regulamento reforça três grandes pilares do regime de sustentabilidade: a «no overdue payables rule», que impede clubes de manter dívidas vencidas perante terceiros (sendo certo que valores em contencioso, desde que reportados corretamente, não são contabilizados como incumprimento); a «football earnings rule», que limita o défice financeiro acumulado a 60 milhões de euros ao longo de três períodos de reporte consecutivos (podendo esse limite ser aumentado até 10 milhões de euros adicionais, em caso de cumprimento de determinados indicadores de solidez financeira); e a «squad cost rule», que introduz um teto máximo para os gastos com o plantel (salários, transferências e comissões), fixado em 70 por cento das receitas relevantes a partir de 2025, num regime progressivo iniciado em 2023 (90 por cento) e 2024 (80 por cento).
A UEFA assume-se, assim, não apenas como organizadora de competições, mas como reguladora do ecossistema económico do futebol europeu, com poderes para fiscalizar, sancionar e condicionar a participação dos clubes.
Supervisão e controlo: o papel do CFCB
Os clubes reportam a sua documentação financeira ao órgão de licenciamento nacional (em Portugal, a Federação Portuguesa de Futebol) que avalia a conformidade e submete os dados à UEFA. O Club Financial Control Body (CFCB), o órgão de administração da justiça e controlo financeiro da UEFA, supervisiona todo o processo e decide sobre eventuais sanções a aplicar.
Sendo certo, que as decisões do CFCB são suscetíveis de recurso para o Tribunal Arbitral do Desporto (CAS), em Lausanne, nos termos do artigo 34.º do Regulamento Processual do CFCB e do artigo 62.º dos Estatutos da UEFA. Exemplo disso foi o caso do Manchester City, que havia sido excluído das competições europeias, mas recorreu e viu a decisão ser revertida pelo CAS.
Um sistema sancionatório graduado
O regulamento prevê um sistema sancionatório graduado: desde advertências e multas, passando por restrições na inscrição de jogadores e retenção de receitas, até à exclusão temporária das provas europeias (a sanção máxima). Não obstante, prevê também a possibilidade de celebração de settlement agreements, que são acordos formais entre a UEFA e os clubes que visam regularizar situações de incumprimento financeiro.
Sob supervisão do CFCB, estes instrumentos permitem definir compromissos claros de correção orçamental e prazos de execução, oferecendo uma alternativa à aplicação imediata de sanções mais gravosas. Contudo, o incumprimento dos termos acordados pode resultar na reabertura do processo e na imposição plena das penalidades previstas.
Na prática, estas regras acabam por transferir para os clubes o maior peso da conformidade, expondo a contradição entre o seu papel central no sistema e a crescente vulnerabilidade a que estão sujeitos.
A exclusão da Juventus das competições europeias em 2023 é o exemplo mais emblemático do novo rigor da UEFA. Esta decisão, baseada precisamente nos princípios de sustentabilidade financeira, demonstrou que o regulamento é aplicado de forma objetiva, mesmo a instituições históricas do futebol europeu. O impacto deste tipo de sanções reforça a perceção de que o incumprimento destas normas pode colocar em causa a própria sobrevivência competitiva de um clube.
Em contrapartida, o Paris Saint-Germain (PSG), após anos de escrutínio, poderá estar prestes a sair da vigilância do órgão de controlo financeiro da UEFA, fruto de receitas recorde e ajustamentos internos, demonstrando que mesmo clubes com forte suporte financeiro externo são agora compelidos a provar sustentabilidade financeira e não apenas liquidez imediata.
Desafios e paradoxos do regulamento
Contudo, subsistem desafios estruturais. As exigências de compliance poderão acentuar a assimetria entre clubes com estruturas administrativas robustas e aqueles com menor capacidade de reporte e planeamento. Esta assimetria cria um paradoxo: o regulamento, concebido para nivelar o jogo competitivo, pode inadvertidamente consolidar a vantagem dos clubes mais estruturados, reforçando uma elite financeira que já detém maior capacidade de investimento e acesso a mercados mais favoráveis.
E, por isso, a centralização do conhecimento técnico e a capacidade de navegar com segurança no complexo sistema de licenciamento e compliance transformam-se em ativos estratégicos quase tão valiosos quanto o próprio plantel desportivo. Do ponto de vista jurídico, este desequilíbrio exige uma vigilância interpretativa constante.
Em síntese, o Regulamento de Licenciamento e Sustentabilidade Financeira da UEFA representa a consolidação de um novo paradigma jurídico-desportivo: o equilíbrio financeiro deixou de ser uma recomendação ética e tornou-se uma obrigação normativa, fiscalizada e sancionada com rigor. A Juventus simboliza o preço do incumprimento. O PSG, a prova de que até os gigantes precisam de se ajustar às regras do jogo. No futebol atual, o compliance jurídico-financeiro tornou-se, assim, o novo «jogo invisível» do futebol europeu e quem não o jogar bem, arrisca-se a ficar fora do jogo."

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