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quinta-feira, 23 de novembro de 2023

«Deixem-nos sonhar»: gracias, Roberto


"No futebol, tudo o que não é militância é conspiração. O pensamento livre é, na tacanha cabeça dos fanáticos, uma miragem sardónica. Não existe e é mau se existir, porque haverá sempre alguma intenção obscura e tentacular na origem do elogio ou da crítica.
Esperei, por conseguinte, até ao limite para este elogio convicto a Roberto Martínez. Até ao timing certo, em que a dúvida já não encontra abrigo e os resultados são o meu principal sustento.
Pertenço à geração que se agarrou ao «milagre de Estugarda» e ao pontapé impossível de Carlos Manuel. Até aos meus 18 anos, esse momento sacrossanto era a exceção no deserto de tudo na Seleção Nacional.
Folheávamos as cadernetas obrigatórias, percorríamos um mapa mundi que viajava da Costa Rica aos Emirados Árabes Unidos e nem sinal de Portugal.
O «deixem-nos sonhar», do Bom Gigante José Torres, representava essa pequenez de pensamento. Talvez houvesse um remate heroico, talvez Bento defendesse tudo, talvez um sprint de Paulo Futre fosse capaz de fazer das suas.
Tudo era minúsculo, a começar na organização da FPF.
Em 2023, a realidade oferece-nos uma equipa extraordinária. E um selecionador nacional, finalmente, merecedor de todas as loas, prosas elogiosas, encómios e outros significantes para o que de mais relevante há a dizer: Roberto Martínez tem feito muito bem ao futebol português.
Habituámo-nos a suportar os maus fígados do antecessor, falavam-nos de uma dívida de gratidão, do Euro16 e da Liga das Nações conquistadas, taças inéditas no museu nacional. Como se essa gratidão tivesse de ser incondicional e nos impedisse de constatar a degradação do futebol, das relações, das palavras.
Martínez é diferente. Para melhor.
A cada aparição pública, o nosso selecionador nacional é um tratado de educação e civismo. Dez jogos, 20 conferências de imprensa – 21 com a da apresentação – e nem uma má resposta, uma má cara, um assomo de malcriadez com quem tem a obrigação de o questionar.
Um cavalheiro, de facto.
Sobre a comunicação estamos conversados. E o futebol?
Roberto Martínez recuperou-me a vontade de ver os jogos da Seleção Nacional. Abandonou, pelo menos por agora, a ideia dos três centrais – desajustada, digo eu, a um grupo com tanto talento no meio-campo e ataque – e libertou o pensamento e a vontade dos executantes mais requintados.
Roberto está a provar que ser um tipo normal, sorridente, positivo, não é incompatível com a função que exerce. Não se coloca acima dos demais e, ao fazê-lo, aproxima-se tanto do povo como dos seus futebolistas. Tão simples, tão bom.
O «deixem-nos sonhar» de 1986 acabou no caos de Saltillo. Adquiriu a forma de pesadelo e mergulhou o nosso pobre futebol num rendilhado de escândalos, comunicados e zangas.
Martínez, o espanhol bom, não esconjurou o Mal do nosso futebol. Nem teria a obrigação de fazê-lo. Já é seguro, porém, escrever que reconciliou uma parte importante dos adeptos portugueses com a Seleção Nacional.
E isto, vejam bem, sem nunca deixar cair Cristiano Ronaldo – o cenário idealizado por muitos, como eu, no final do Mundial 2022. Até nisso, Roberto Martínez mostrou habilidade e acerto.
As coisas, no futebol e na vida, são por norma mais simples do que nos querem fazer crer. Roberto faz-nos sonhar com títulos porque mete os melhores em campo e a seleção joga como tem capacidade para jogar. Fim.
«Deixem-nos sonhar», y nada. Gracias, Roberto."

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