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segunda-feira, 14 de agosto de 2023

No país de Sérgio Conceição


"Sérgio Conceição é uma personagem fascinante. Entenda-se: nada a ver com os clubismos grosseiros, sobretudo em torno dos chamados grandes, que pontuam o futebol. Ao identificá-lo como "personagem", sei mesmo que corro o risco de menosprezar a sua humanidade, mas é um facto que as formas mais conflituosas do seu comportamento o levam a surgir como se fosse apenas a confirmação do seu próprio duplo mediático. Entre as suas fraquezas, essa é a mais bizarra: comportar-se como se, por inusitado masoquismo, tivesse assumido a missão de ilustrar a rebeldia que outros lhe apontam.
Convenhamos que, quando as coisas adquirem tal dimensão, as ambiguidades são, no mínimo, curiosas. Pensemos, por radical contraste, em Mick Jagger. Celebrou os seus maravilhosos 80 anos e quase ninguém se preocupou em enaltecer as singularidades da sua voz, o génio teatral da sua presença em palco ou apenas, já agora, o facto de, através de centenas de composições, o seu nome estar inscrito na história gloriosa de mais de meio século do cancioneiro do rock"n"roll... Keith Richards necessitou apenas de um comovente vídeo de 30 segundos para lhe dar os parabéns. Nós passámos 24 horas a ouvir a palavra "rebelde" para classificar Jagger sem que ao menos nos explicassem como, a favor de quê, ou contra quê, se define a sua rebeldia.
Claro que Jagger está acima de tais desmandos. Mas tudo isto é tanto mais desconcertante quanto o mundo mediático do futebol vive assombrado pela noção de "justiça". Porquê as aspas? Porque há uma militante obsessão justiceira na cultura dominante do futebol - entenda-se: na avaliação dos resultados dos jogos - cujo fundamento procuro há muitas décadas sem que ao menos um protagonista me esclareça. A pergunta é: porque é que o resultado de um jogo de futebol tem de ser compulsivamente classificado de "justo" ou "injusto"?
Bem sei que, ao colocar tal pergunta, estou a atrair velhíssimos preconceitos anti-intelectuais segundo os quais qualquer problematização das linguagens mediáticas do futebol pressupõe algum menosprezo, porventura o achincalhamento, dos seus protagonistas. Como não possuo poderes mágicos para demonstrar a minha boa fé e disponibilidade mental, passo à frente...
Não sem chamar a atenção para a insolúvel contradição daquele enunciado. A saber: qualquer invocação de justiça pressupõe o primado de alguma lei que justifica e legitima a sua aplicação. Se "não matarás" é uma das regras que Moisés traz do Monte Sinai (vejam o filme, vale a pena), isso envolve a afirmação de um dispositivo capaz de repor a justiça em caso de incumprimento da lei.
Ora, muitos analistas do futebol parecem acreditar que há uma justiça escrita em anais nunca mencionados segundo a qual uma equipa que ganha um jogo em que não foi a melhor ou não jogou tão bem (segundo esses mesmos analistas) está a ter um comportamento ilegal... Aliás, quando um resultado é classificado como "injusto", fica sempre por esclarecer o que se deve fazer... Repetir o jogo? Ir para prolongamento? Suspender o árbitro?
Há em tudo isto uma dimensão irremediavelmente caricatural que, em boa verdade, nada tem que ver com estas considerações. A questão é outra: propaga-se um entendimento cultural do futebol que todos os dias instila na sociedade a ideia (?) de que o desenlace de um jogo não é um facto saborosamente imponderável, necessitando de ser legitimado pela "justiça" dos golos que entraram ou não entraram.
Decididamente, Sérgio Conceição não é Mick Jagger. A sua tocante vulnerabilidade leva-o a viver, e viver mal, no interior de todo este imaginário legalista. A ponto de julgar que o facto de discordar das decisões de um árbitro justifica que não obedeça a essas mesmas decisões: "Não saio daqui", diz ele para o árbitro que o expulsou do banco. De onde provém a sua rebeldia? Do facto de também ele acreditar que a sua sensibilidade aos acontecimentos ("justos" ou "injustos") basta para legitimar o facto de não querer sair dali - acontece que, neste caso, existe uma lei que, com toda a legitimidade, o irá sancionar. O seu irrealismo tem qualquer coisa de trágico, no interior de uma tragédia em que também participamos.
Assim vai o mundo do futebol. Vivemos dias e dias a avaliar se os mágicos centímetros com que o VAR exprime a sua vocação divina serão um método de purificação da nossa dimensão humana. Aceitamos ser reféns dessa "pureza perigosa" (roubo a expressão a Bernard Henri-Lévy) capaz de satisfazer os mais variados infantilismos ideológicos, levando-nos a desviar o olhar do que mais nos perturba. Exemplo? O silêncio instalado sobre o facto de ser preciso enquadrar algumas centenas de adeptos em "caixas de segurança" da polícia quando se disputam jogos entre os chamados grandes. Qual a grandeza disso?"

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