"Num dos módulos do último Curso de Formação de Treinadores de Karate, em que tive a honra de actuar como formador, explorava eu a axiologia e as variáveis sócio-culturais desta modalidade fundamentado em vários factos quando um formando me interpelou: “Por que motivo o professor apresenta sempre os casos relativos ao desporto pela negativa?” Respondi-lhe em três passos: o primeiro, irónico, porque para falar bem do desporto já cá havia muita gente; o segundo, baseado em António Damásio, o qual na sua última obra (1) nos diz que para se saber o que uma coisa é teremos de saber o que ela não é (a citação correcta é: “Para explicar bem o que uma coisa é, convém deixar claro o que a coisa não é.”); o terceiro, elucidando-o que não apresento os casos pela negativa, antes apresento aqueles que menos são conhecidos tanto dos treinadores como dos desportistas e do público em geral – são factos, independentemente das interpretações –, dado que se fala muito em ética no desporto e em valores do desporto mas o resto fica na penumbra e, embora seja normal abordarem-se casos de corrupção, de violência e de doping no desporto, muito fica por apresentar ou por esclarecer em relação às restantes perversidades no desporto. E elas existem…
Mas por que motivos se coloca, e bem, uma questão destas num módulo de Formação de Treinadores que aborda normas, símbolos, valores (éticos, morais, sociais e individuais) e crenças? Exactamente porque o desporto tem sido tratado de uma forma politicamente correcta. A única excepção vem de Jean-Marie Brohm que, apesar de numa perspectiva marxista, desde a sua “Sociologie Politique du Sport”(2) em 1976, tem desenvolvido de uma forma perene a sua Teoria Crítica do Desporto (3).
O desporto tem sido apresentado como uma actividade educativa e formativa imbuída de valores e de pressupostos éticos quando as suas características actuais estão acrescidas de exigências sistemáticas de espectáculo, de interacção com os ‘mass media’, de organização através da política e da economia, da presença do negócio, do marketing, da tecnologia, da ciência e de um profissionalismo regulado juridicamente por códigos laborais.
Pretende-se que o desporto, ideologicamente, não se encontre açambarcado pelo capitalismo e pelo mercantilismo quando, na verdade, já o está na prática. Nele, até os humanos são transaccionáveis…
O gosto do adepto ou do espectador pelo jogo ou pelo clube, a dedicação do treinador e o comprometimento do desportista continuam ainda a explorar o ‘ethos’ do «amor à camisola» – a paixão –, da «verdade desportiva» – a justiça – e do «fair-play» – a equidade. Invocam-se constantemente estes três conceitos, generalizados em clichés, sem se definirem previamente o que são e do que se fala. E ao invocarem-se sem se definirem não poderemos saber do que se está a falar, o que origina falsas interpretações.
O desporto é actualmente um produto manuseado através de campanhas de marketing bem concebidas. Hoje em dia o «amor à camisola» é vendido ao adepto sem disto ele se aperceber… e logo ele corre à loja do seu clube a comprar a camisola (com o patrocinador nas costas), o boné, o cachecol e a bandeira do mesmo – para além do bilhete para assistir ao evento como espectador. Aquilo que o adepto despende para o clube pelo seu «amor à camisola» é uma parte importante dos montantes que o financiamento do clube proporciona a alguns. Afinal, o adepto acaba por comprar a sua própria paixão… Mas no sentido inverso, o adepto – espectador ‘in loco’ ou espectador no sofá – não absorve só o espectáculo desportivo: ele absorve também, através de imagens subliminares, tudo aquilo a que é exposto. E aí a publicidade faz o seu trabalho. Já não consumimos publicidade! É a publicidade que nos consome!!! E aí somos manipulados… mesmo que tenhamos uma crença contrária!
E o espectador – tal como o próprio jogador, o treinador, o árbitro, o jornalista, o comentador – traz à liça na sua argumentação a «verdade desportiva» e o «fair-play». Peça-se a qualquer um destes intervenientes no fenómeno desportivo para definir qualquer um destes conceitos… (exercício que o próprio leitor poderá executar!) e veja-se qual o resultado.
Como nos diz Manuel Sérgio (4), “são muitos os riscos de alienação, no consumo do desporto, por parte do espectador pois que é tentado a fazer seus alguns valores que o desporto altamente competitivo produz e reproduz: a quantificação do êxito, a exaltação desmedida dos mais capazes e a hierarquização meritocrática – valores que não têm em conta quaisquer critérios pedagógicos e não ajudam por isso, à formação de pessoas livres e libertadoras.”
Não se trata de negar a existência de valores no desporto – porque sim, eles existem e estão aí inúmeros factos para os demonstrar. Os valores podem e devem ser apresentados através dos contra-valores e a ética ser apresentada através do seu inverso, mas realcemos que a função formativa do desporto – formação do carácter, inculcação de valores tais como a disciplina, a perseverança, a cooperação, a justiça – está só presente na fase inicial da práctica do indivíduo. Passada esta, o desporto deixa de ser apenas para desportistas e passa a ser só para vencedores.
Será a transparência de métodos e de actuação uma pertença do desporto?
Por que motivos tantos suicídios provocados por condições existentes no desporto? Sim, porque são mais do que imaginamos…
Quais as causas – ou as origens dessas causas (este é o ponto que, de facto, me parece ser mais relevante, embora nunca abordado!) – de tanta morte súbita na competição? Sim, “tanta” porque a maior parte dos casos nem sequer são divulgados ao público em geral. Estatísticas no nosso país são desconhecidas. A própria comunidade médica parece revelar um certo desassossego em explicar cientificamente estes casos.
As circunstâncias em que decorre o treino intensivo precoce nas várias modalidades são explicadas em toda a sua plenitude? Até que ponto não se trata – ou tratará mesmo? – de exploração infantil?
As fraudes cometidas intencionalmente por competidores, treinadores, árbitros e outros agentes desportivos, não só no futebol mas também na ginástica, no atletismo, no ciclismo, na esgrima, no ténis e em muitas outras modalidades fazem ou não parte do desporto?
Os resultados combinados, a manipulação destes por causa das apostas e a movimentação de altas verbas à volta dos mesmos serão variáveis inerentes ao próprio desporto?
E o que dizer sobre os abusos sexuais no desporto? Os detectados e os não detectados… São relatados e/ou participados todos os casos ocorridos? São sancionados? Existem estratégias de prevenção?
No que se refere à morbilidade e às lesões permanentes dos competidores com a consequente interrupção antecipada das suas carreiras desportivas, há medidas para a sua diminuição? Sabemos que o risco e o acaso fazem parte do desporto, mas o sistema desportivo acautelará os interesses e a integridade física (e psicológica) dos desportistas?
São factos existentes, ocorridos, interpretemo-los de um modo ou de outro. Mas o que é feito para serem evitadas ou prevenidas estas situações e as mesmas erradicadas do desporto?
São perguntas demais para tão poucas respostas… e repare-se que sobre corrupção, violência e doping nem sequer aqui deixo uma palavra.
É hora de deixarmos de analisar o desporto de uma forma politicamente correcta. Temos de analisar factos, ponderar diferentes interpretações e conjugar medidas. Já não vamos lá só com campanhas de sensibilização nem só com o agravamento de sanções. Sejamos realistas e tratemos de explicar o desporto através dos seus efeitos para conseguirmos chegar a bom porto. Sim, é isso mesmo: efeitos – e-fei-tos!"
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