"A prova dos 50km de marcha era até 2017 a única competição do atletismo mundial que só existia para os homens.
Eu e o meu treinador sempre considerámos esta situação injusta. Se os homens tinham uma prova de 20km e outra de 50km marcha, nós, mulheres, só tínhamos uma competição de 20km. Isso significava que nos Jogos Olímpicos, Campeonatos do Mundo e da Europa podiam estar seis homens marchadores de cada país, enquanto nas mulheres só podíamos estar três.
A primeira mulher a lutar contra esta grande injustiça foi a atleta americana Erin Taylor. Em 2016, com a ajuda do seu advogado, e porque a IAAF permitiu que as equipas fossem mistas, ela conseguiu ser integrada na equipa americana dos 50km marcha, no Campeonato do Mundo das Nações, em Roma.
Depois desse feito, a pressão feita junto da IAAF, para a introdução da prova de 50km marcha para mulheres foi muito grande. Para acalmar os ânimos, no final de 2016, a IAAF informou as Federações Nacionais que a partir de 1 de Janeiro de 2017 iria certificar o primeiro recorde do mundo para os 50km marcha no sector feminino. Ao mesmo tempo, as mulheres que alcançassem os mínimos dos homens, de 4h06.00, também podiam estar no Campeonato do Mundo, em Londres, em competição mista, mas sem direito a qualquer prémio.
Era justo? Não!
Para demonstrar a injustiça que estavam a cometer, só existia uma forma: tentar competir numa prova de 50km marcha e alcançar um grande resultado, para dessa forma podermos alterar as mentalidades de que as mulheres não tinham capacidades físicas de realizar 50km marcha com qualidade!
O Jorge Miguel foi o homem que me formou atleta e sempre trabalhámos juntos. Conhecia todo o meu trabalho acumulado ao longo dos anos e sabendo que eu, nos 50km marcha, tinha grandes possibilidades de mostrar essa capacidade, lançou-me o desafio: ser eu a primeira recordista do mundo feminina da distância.
Não necessitei de pensar muito, para lhe responder que sim e que podia fazer o plano de treinos para atingir esse objectivo. O plano era que, ao conseguir bater o recorde do mundo, fizesse história e deixasse um marco importante para as gerações seguintes.
Esse objectivo foi conseguido em Janeiro de 2017, em Porto de Mós, quando realizei 4.08.26h, embora não conseguisse alcançar a marca mínima dos homens para poder estar nos Campeonatos do Mundo.
Não desisti. Queria mesmo estar em Londres a fazer os 50km de marcha, treinei sempre para lá estar, sem nenhuma garantia que os pudesse fazer.
Ao mesmo tempo que me preparava, procurei entrar em contacto com pessoas influentes na marcha mundial, que me pudessem ajudar a alcançar esse objectivo. Através da Erin consegui falar com o seu advogado, Paul DeMeester, que já estava a trabalhar no processo da integração da competição de 50km marcha femininos no Campeonato do Mundo.
O advogado Paul DeMeester foi a peça fundamental. Ele procurou que a IAAF introduzisse a competição de forma voluntária, mas não conseguiu. Então informou-a que lhe colocaria um processo no Tribunal Arbitral do Desporto (TAS), uma vez que não estavam a cumprir nos direitos da igualdade de género. Finalmente, a três semanas do Mundial, a IAAF resolveu integrar a competição de 50km de marcha femininos, com mínimos correspondentes para as mulheres, de 4h30m, e com direito aos prémios, tal como em todas as outras provas. Para mim, esta foi a maior vitória.
Em Londres, alcancei o título de Campeã do Mundo e com um novo recorde do mundo, de 4h05m56s. Foi um momento grandioso e, ao mesmo tempo, demonstrámos que nós, mulheres, tínhamos condições físicas e psicológicas para fazer os 50km marcha.
Em Outubro de 2017, fui informada pelo Presidente da Associação Europeia de Atletismo (EAA) que a competição de 50km marcha femininos não iria ser integrada nos Campeonatos da Europa em Berlim no ano seguinte. Como é óbvio, não gostei da informação, queria lá estar a fazer 50km!
O advogado Paul DeMeester contactou-me quando soube disso e entrámos com um processo no TAS contra a EAA, com base na discriminação de género que iria ser cometida. Como a Associação Europeia pediu para não se avançar com o processo, pois iria introduzir a competição, tudo ficou por ali e pudemos competir em Berlim.
Mais uma batalha ganha! Em Agosto de 2018, sagrei-me Campeã da Europa nos 50km marcha femininos.
Qual era o próximo objectivo? Conseguir a introdução da prova de 50km marcha femininos nos Jogos Olímpicos em Tóquio.
Paul DeMeester começou logo a planear a estratégia. Tudo foi feito para que a competição fosse introduzida nos Jogos Olímpicos de forma justa, sem entrar com um novo processo, mas infelizmente isso não aconteceu e tanto a IAAF, agora World Athletics, como o Comité Olímpico Internacional (COI) procuraram ajudar-se mutuamente para que a competição não fosse introduzida.
O COI é uma instituição que sempre refere que luta pela igualdade de oportunidades entre os homens e mulheres!
Em Março de 2019, sintetizou num documento, desenvolvido pelo Grupo de Trabalho sobre Igualdade de Género, todas as actividades que o Movimento Olímpico tem realizado com vista à adopção de princípios de igualdade de género em todas as diferentes dimensões desportivas e lançou 25 recomendações para que a igualdade de género seja uma realidade. O senhor Presidente do COI, Thomas Bach, diz-se “plenamente convencido que o desporto é uma das plataformas mais poderosas para a promoção da igualdade de género e empoderamento das mulheres.”
Em maio de 2019, entrámos com um processo no TAS contra a World Athletics e o COI, novamente com base na discriminação de género. Houve uma audiência no TAS a 29 de Julho, em Lausanne. O TAS ouviu todas as partes envolvidas no processo e no final pediu-nos para sermos discretos. O processo continuava, sem datas de resolução.
O nosso processo nunca foi tratado da mesma forma como todos os outros que entraram no TAS, nunca foi divulgado na sua página oficial, era como se não existisse! Posteriormente, por pressão do Paul, informaram-no que iriam divulgar a sua decisão final em Agosto. Quando chegou o dia, que era em Setembro, posteriormente em Outubro, depois Novembro, dezembro, Janeiro e, finalmente, em início de Fevereiro de 2020, chegaram à conclusão que não tinham competência para julgar este caso.
O TAS, ao não decidir, tomou uma decisão no mínimo estranha. Pela minha parte irei continuar a lutar, como fiz em 2017, e só irei abandonar a minha luta quando me faltarem as forças ou quando a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres for plenamente alcançada.
Sei que o Mundo por vezes não é justo e nem sempre se consegue que se faça justiça no tempo certo, mas não irei baixar os braços.
Tal como em 2017, continuarei a fazer o meu trabalho como atleta e estarei preparada para fazer os 50km marcha no Japão, se até lá houver algum movimento que leve os responsáveis do COI ainda a mudar.
Se isso não acontecer, pois que seja. Tentarei lá estar para fazer os 20km e continuarei mais quatro anos até Paris 2024. E só depois de ver que se fez justiça é que me sinto em condições de terminar a minha carreira."
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