"Foram o centro da minha paixão por um jornalismo que já não há nem voltará a existir. Por isso foram únicos e inimitáveis, por muito que alguns, pobres de nós, lambam as poeiras das carpetes para não ficarmos a uma distância impossível da sua eternidade.
Vou começar por escrever de cor até porque sei que isso lhe daria um gozo particular, sobretudo a ele que gostava de falar de cor, misturando a memória com o esquecimento, a realidade com o fantasma de uma realidade que já tinha vivido e, entretanto, se fora apagando devagarinho. Batia com força nas teclas de uma máquina de ferro forte como o seu Saab que deixava estacionado em qualquer aberta de beco ou viela do Bairro Alto, cheio de jornais antigos e pastas com recortes de jornais sem data. Adorava pegar no L’Équipe, na Gazzetta dello Sport, na Marca, em tudo o que fosse periódico desportivo do mundo e, com a tesoura, zás-pás-trás, coluna aqui, página ali, na brincadeira chamávamos-lhe um ‘recórter’, guardava pilhas de papel nas estantes que ficavam por detrás da sua secretária, era uma espécie de parede de arquivo, pastas aos montes, volta e meia o Vítor Hugo, que chegava tarde à redacção, vindo do treino do basquetebol das miúdas e das novidades do Benfica e se sentava na cadeira dele, que saía sempre cedo, pegava em duas ou três pastas e punha no caixote do lixo, irritado, e ainda desabafava: «Nem dá por falta delas!».
Os recortes do Aurélio Márcio iam parar à ‘cesta secção’, como lhe chamava o Pinhão, homem com um jeito danado para dar nomes a coisas e a artigos de jornais, inventor dos célebres Hoje Jogo Eu e do Ai Que Saudades, ai, Ai, uma habilidade do quilé para brincar com as palavras que, para o Aurélio Márcio eram só e apenas palavras, tirava o papel da máquina e distribuía umas virgulas com a caneta, meio à vontade do freguês, e se alguém lhe perguntava a opinião sobre algo que acabara de escrever limitava-se ao: «É comprar A Bola amanhã. Por 5 escudos explico tudo».
Quando subi pela primeira vez as escadas de madeira do n.º 23 da Travessa da Queimada, chamado pelo Joaquim Rita para uma conversa com o grande chefe Vítor Santos, entrei na estrada de tijolos amarelos do Feiticeiro de Oz. Já lá vão mais de trinta anos, o Aurélio (que na semana passada teria feito 100, nem 70 tinha), havia algo de imponente naquela sala dos telexes e dos contínuos onde, em cinco minutos, ele me disse: «O Rita, que é como meu irmão mais novo, diz que podes vir a ser um grande jornalista. A Bola abre as suas páginas para que consigas provar isso mesmo».
Provei ou não, pouco importa. Nunca envergonhei as cinco letras mágicas, como o Vítor Santos chamava àquele título esplêndido, e nunca envergonhei o nome de uma família que teve, em todos os Afonsos, um juiz do Supremo Tribunal. Em todos menos em mim, que nunca fui capaz de ditar uma sentença e só quero escrever, escrever, escrever sempre, sendo útil, sendo sério, sendo capaz de interessar aqueles que continuam, ao fim destes anos todos, a ter a infinita paciência de ler a minha visão do mundo.
Há mais de trinta anos, a Bola explodia de nomes como aranhas entre as estrelas, para usar a expressão de Jack Kerouac. Deram-me uma mesa modesta, que dividia a meia com o o Pedro Roriz, o rapaz dos automóveis, e que ficava mesmo em frente da mesa do Sôraurélio que era assim que o tratavam os outros senhores daquela casa encantada, os contínuos como o Neres, o Rodrigues, o Cunha, o Calheiros, o Joãozinho da sovela, gente pela qual continuo a ter uma ternura quase familiar. Não era fácil ser garoto por entre a selva dos nomes: Vítor Santos, Carlos Pinhão, Alfredo Farinha, Carlos Miranda, Aurélio Márcio, Homero Serpa, Cruz dos Santos na frente da elite; Joaquim Rita, Vítor Serpa, Santos Neves, João Alves da Costa, Leonor Pinhão...
Houve uns que fizeram o enorme favor de me ensinar, como o Pinhão, que me deixava fotocópias dos meus artigos sobre a mesa com uma ou outra expressão sublinhada com a frase «a gente depois conversa», ou como o Farinha que me pegava pelo cotovelo e dizia: «Tens jeito para escrever em imagens, escreve sempre em imagens».
Morreram todos. Para toda a gente menos para mim. Foram o centro da minha paixão por um jornalismo que já não há nem voltará a existir. Por isso foram únicos e inimitáveis, por muito que alguns, pobres de nós, lambam as poeiras das carpetes para não ficarmos a uma distância impossível da sua eternidade.
Volto ao de cor. O Aurélio ia a caminho do México para o Mundial de 86 (fez todos de 1962 a 2002) e eu, que estava a editar, recebi a sua coluna, ‘De domingo a Quinta-feira’. Continuo a recitá-lo de cor: «A meu lado uma mulher lindíssima (ele dividia-as em lindas e lindíssimas), diz-me que é israelita. Espanto-me! que faz uma senhora deslumbrante, israelita, num voo entre Madrid e a Cidade do México? Mantém-se misteriosa, evita a conversa, conta que vai em trabalho, coisa oficial, e contra-ataca; que faz um português num avião de Madrid para o México? Falei-lhe baixinho. E não digo mais nada». Nem ele nem eu. Era estragar-lhe a prosa."
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