"Se quer comprar água verdadeira no deserto, e não água que é apenas uma miragem leve um camelo
Miragem
1. - Como começar a trabalhar, excelência? Com que métodos, com que objectivo.
- Já alguma vez viu uma miragem?
- Sim.
- É impressionante, não é?
- Prefiro, apesar de tudo, coisas em que possa tocar.
- Pois. Mas deixe-me falar de coisas visíveis, mas em que não se pode tocar. A miragem.
- Ok.
- À medida que vossa excelência se aproxima da miragem, com a água claramente ali à sua frente, logo percebe que não. Que ela afinal não está ali. Era uma espécie de cinema privado, uma alucinação qualquer, uma imagem na sua cabeça que não existe na realidade. Que coisa estranha, não lhe parece, excelência?
- Sim, sim.
- Mas o mais terrível é que quando alguém se aproxima, a imagem da água que se via ao longe vai desaparecendo, mas vai aparecendo outra imagem de água, noutro lado, mais afastada. Isso é terrível.
- Sim, terrível, excelência.
- Imagine alguém sedento no deserto. Que armadilha os seus olhos lhe pregam. É um labirinto trágico. Ele pode ficar dias e dias a correr atrás de miragens. Sempre a pensar: agora sim, estou a ver água, agora é verdadeira!
- E assim morrem de sede.
- Morrem de sede a poucos metros de água abundante, mas que está apenas na sua cabeça, na sua imaginação. Uma água mental.
- Uma água mental?
- Água mental, belo termo, excelência.
- E sabe de um outro pormenor, caríssimo? Contaram-me e é factual.
- Diga?
- Os animais não são enganados pelas miragens.
- Não? Que estranho!
- Exactamente. Dizem que se os humanos puxarem um camelo em direcção à água de uma miragem, o camelo se recusa, não vai.
- É um detector de miragens.
- Isso, excelência, isso... Em suma, se vossa excelência vai para um deserto, leve um camelo.
- Ok, vou apontar no caderno, excelência.
- Os camelos sentem a água a quilómetros de distância, e é nessa direcção que seguem. Eles sabem.
- Sentem a água?
- Sim, não me pergunte como. Não estudei camelos o tempo suficiente.
- A água que dizem que não cheira, que é neutra, etc. etc. A água é detectada a muitos quilómetros pelos camelos?
- Sim. Portanto...
- Portanto, se vossa excelência quer comprar água verdadeira no deserto e não água que é apenas uma miragem, leve um camelo.
- Um camelo para fazer negócios no deserto.
- Claro, excelência, claro.
Linha do horizonte
2. - Mas repare, excelência, miragem e linha do horizonte não são o mesmo.
- Claro que não, claro que não.
- Miragem é algo falso, algo que não existe na realidade, uma alucinação.
- Sim.
- A linha do horizonte também não existe no mundo enquanto linha concreta, mas existe individualmente e é algo que, no limite, vossa excelência pode localizar no espaço.
- Um objectivo, a linha do horizonte!
- Mas vossa excelência pode também ver o efeito benéfico das miragens.
- Por exemplo?
- Uma miragem faz sair um sujeito do mesmo sítio, provoca aceleração na vida do sujeito.
- Sim, isso é certo, excelência, até talvez mais do que um horizonte.
- Exactamente. Uma miragem acelera as nossas acções muito mais do que a linha do horizonte.
- A linha do horizonte define uma espécie de futuro, mais ou menos longínquo. A miragem, essa, atira logo para o presente. A miragem está sempre mais próxima do que a linha do horizonte.
- Assim, excelência, diga-me: o que podemos aconselhar um ou outro? A definição de uma linha de horizonte ou a multiplicação artificial de miragens?
- Eu diria, caríssimo, se vossa excelência quer caminhar, se o seu objectivo é avançar rapidamente, então, multiplique as miragens artificiais ao longo do seu dia. Mas, claro, na direcção da sua linha de horizonte.
- Eis, portanto, um método de trabalho, na vida, no treino e etc.: linha do horizonte bem definida e múltiplas miragens no caminho para acelerar o percurso. Vou seguir o seu conselho, excelência.
- Vai ver que não vai parar um minuto. E na direcção certa.
- Parece bem, excelência, parece-me muito bem."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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