"Temos por hábito dizer, do alto da nossa sabedoria, e pela distância que temos das situações em que as personagens mediáticas estão envolvidas, que na mesma situação delas resolveríamos o problema, e que as nossas acções seriam sempre as mais adequadas. São raros os que de nós colocam incerteza sobre o seu próprio comportamento, quando nos é colocada uma situação paralela às que são mais faladas pelo grande público.
Ao João Félix, por exemplo, é pedido que, com 19 anos de idade, decida sobre aquele que pode ser o momento mais importante e mais marcante da sua vida, com a sapiência dos grandes.
Pedem-lhe que decida como José Boto, que tem mais experiência, mais informação e mais conhecimento de todas as culturas e contextos futebolísticos do que os cabelos brancos que tem na cabeça. Olhem que não assim tão poucos!
Pedem-lhe que seja Rui Malheiro, e use a sua capacidade para analisar equipas, formas de jogar, e as enquadre dentro das suas próprias qualidades, dos seus defeitos, do que pode aprimorar, do que precisa mesmo de aprender; e ainda lhe pedem que faça uma projecção do que quer ser no futuro.
Pedem-lhe que seja Helena Costa, e consiga perceber dentro de todo esse contexto que: não havendo condições para que ele se possa evidenciar e fazer um bom trabalho, por mais tentadora que seja a posição onde lhe colocam – pela notoriedade -, por mais euros que entrem na conta, que não deve ceder aos caprichos externos e que a decisão deve ser única e somente dele.
Pedem-lhe ainda que seja Vitor Frade, e que consiga articular todo esse pensamento, e dar expressão a uma teoria explicativa do porquê de um miúdo de 19 anos, que ainda há pouco tempo passava férias pagas pelo pai do amigo, recusar uma proposta que vai transformar por completo a sua vida.
Em termos de jogo, quer-me parecer que, pelo valor que o Atlético de Madrid está disposto a pagar, Simeone vai apostar de forma inequívoca no talentoso avançado. E essa aposta é um dos factores fulcrais para que Félix se sinta tentado a assinar pelos colchoneros: vai ter protagonismo!
E se assim for, se o treinador o libertar das rígidas tarefas defensivas e da abnegação que ele exige em todas as acções sem bola, creio que triunfará. Porém, o triunfo estará sempre ligado ao número de golos e assistências, uma vez que no modelo de jogo preconizado pelo treinador argentino pouco espaço há para que o jovem avançado se possa evidenciar em outra esfera que o torna verdadeiramente especial: o jogo entre sectores.
Do ponto de vista do seu crescimento como jogador, a mudança para Madrid pode ditar de forma definitiva que tipo de jogador será. É certo que ele tem o talento necessário para vingar, tem o talento para fazer golos e assistências se receber a bola em condições no último terço, mas não menos verdade é que ele é muito mais, pode dar muito mais, pode participar muito mais, e ser decisivo em muitas mais situações do que apenas naquelas em que termina a jogada. Sem esquecer que El Cholo é um treinador que procura sobretudo o rigor e agressividade defensiva, na maior parte das vezes com as linhas baixas, e as situações em que recebe a bola podem não ser as mais adequadas.
Se os primeiros jogos correrem bem, sendo que o treinador não poderá esconder €120 milhões no banco e dar-lhe tempo para crescer sem muita pressão e sem grande responsabilidade, João Félix será a chave de todo o sucesso, mesmo quando não estiver directamente implicado. A imprensa e os adeptos vão tratá-lo desta forma: como o factor diferenciador na equipa, ainda que não tenha feito essa diferença em campo – e acabará por ser esse o seu principal desafio, uma vez que o talento não é condição suficiente para que se tenha sucesso no futebol.
A imprensa espanhola é super agressiva, quando se trata de jogadores estrangeiros, e há o problema da expectativa que o valor avultado da sua transferência irá criar. Assim como poderá ter o mérito de tudo, também terá o demérito. Como Messi e Ronaldo, o criativo avançado será o grande alvo de todas as críticas quando a equipa não tiver o resultado esperado, ainda que não seja responsável de todo. Essa pressão será tremenda, e surgirá de todos os lados: da imprensa, dos adeptos, dos adeptos rivais, do clube, dos próprios colegas. Quando a defesa falhar, culpa de Félix, quando os médios falharem, culpa de Félix, quando o treinador falhar, também será ele o culpado.
Falando mal e depressa, não é um ambiente de sonho para um jovem de 19 anos que, convém lembrar, tem menos de doze meses na primeira divisão portuguesa. Há ainda outro factor que pode não o ajudar: o seu estilo de jogo. Não é um jogador vistoso e que chame a atenção pelo que faz. Não tem um drible espectacular, não é particularmente veloz, não é robusto e foge do choque. Para se conseguir entender o que ele faz de diferente, para lá do golo, é preciso ir detalhe. Sem microscópio, é muito difícil perceber a superioridade do miúdo, e por aí ficará abandonado aos momentos de último terço, que serão sempre em muito menor número do que os restantes.
Se for para o Wanda Metropolitano, João Félix apenas conseguirá ser aquilo que os golos e as assistências lhe permitirem – uma vez que é essa a responsabilidade que todos lhe vão imputar depois da saída de Antoine Griezmann (a maior estrela da equipa), e do valor astronómico da sua transferência."
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