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sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

“Pintei o cabelo, construí uma personagem e perdi contratos por causa disso: ‘Só vens se mudares de estilo’. Nunca mudei”

"Quando hoje passa pelo Vale do Jamor e olha para o relvado dos campos de golfe, Abel Xavier, de 46 anos, não consegue deixar de sorrir e pensar na infância que ali viveu num bairro social, à guarda dos avós, depois de vir de Moçambique, sua terra natal. Nesta primeira parte da viagem que fazemos pela sua vida em forma de entrevista fala-nos da adolescência passada na zona de Queijas, de como foi à boleia tentar a sorte ao Sporting, às escondidas do pai, um homem exigente na educação dos filhos e de como foi determinante a passagem pelo E. Amadora para chegar ao Benfica e daí partir para o estrangeiro. E claro, conta na primeira pessoa como viveu os acontecimentos do Euro 2000 e da injustiça que diz ter sido alvo.

Nasceu em Nampula, Moçambique. Tem irmãos?
Tenho duas irmãs e um irmão todos mais novos, estão a viver em Portugal e todos constituíram família. O meu irmão mais novo, o André Xavier, também iniciou a sua carreira como jogador de futebol no Belenenses e neste momento é semi-profissional, está em Évora. Tenho os meus avós ainda vivos, são umas pessoas muito especiais para mim. Houve parte da família que decidiu vir para Portugal, mas outra parte sempre residiu em Moçambique e reencontrei-os agora, embora muitos deles nem conhecia porque saí de lá em 1975. E os três, quatro anos que vivi em Moçambique, vivi à guarda dos meus avós maternos, em Lichinga, Cuamba.

Porque foi criado pelos avós em vez dos pais?
Penso que era normal naqueles tempos que as famílias fossem um pouco disfuncionais. O meu pai é de Tete, a minha mãe é da Beira e, por motivos profissionais, o meu pai trabalhava nos caminhos de ferro e a minha mãe era enfermeira, eles não estavam sempre juntos. O meu pai até tem uma história de igreja. Mas quando conheceu a minha mãe deixou a igreja (risos).

Tem alguma memória da infância em Moçambique, há alguma coisa que o remeta imediatamente para lá?
África sempre teve presente na minha vida familiar, na minha infância e adolescência. Primeiro, porque a inserção da sociedade portuguesa naqueles tempos foi muito complicada e difícil. Posso testemunhar na primeira pessoa a criação dos bairros sociais (ou bairros da lata), porque foi aí que fomos inseridos. O sentido de comunidade foi um pouco fomentado pela aglutinação de pessoas que deram entrada em solo português. Fomos para zonas periféricas, fomentámos os bairros clandestinos e eu fui inserido no Vale do Jamor. De 1975 a 77 tenho uma vida que cresce no Vale do Jamor, com os meus avós. Na realidade, é só em Portugal que conheço e tenho os meus pais mais presentes. Ou seja só conheci a união da família em Portugal.

Os seus pais já cá estavam?
Não, vieram depois, mas concentrámo-nos no Vale do Jamor. Eu, os meus avós, pais e irmãos. Havia pouco poder de escolha na altura, os meus pais tiveram dificuldades em conseguir arranjar trabalho. Mas, de alguma forma, tanto ele como os meus avós conseguiram erguer o conceito de família e integrar-se na sociedade.

Do que se recorda mais dos tempos no Vale do Jamor?
Eu era uma criança de rua. Tinha os meus amigos do bairro. Agora já não existe o bairro e existe o golfe, porque era mesmo ali, na colina por trás de Linda-a-Velha. Quando passo pela A5 e olho penso sempre: "vivi ali". Mais tarde conseguimos ir para Queijas, depois os meus pais foram deslocados para um bairro social em Vialonga, mas eu fiquei sempre à guarda dos meus avós, em Queijas. Fiz a escola preparatória em Queijas e a secundária em Caxias.
Gostava da escola?
Há uma coisa que é certa. O facto da minha família ter perdido tudo, porque era uma família de posses em África - nomeadamente os meus avós, que tinham património -, fez com que a educação passasse necessariamente pela escola, era uma educação muito rígida, muito dura. Eu era um bom estudante. Só que depois tinha o lado irreverente da rua, que fez com que muitas vezes fosse indisciplinado na fase da adolescência. Eu gostava muito do futebol da rua e fomentava com os meus amigos muitos jogos de bairro contra bairro, e isso furava um bocado o conceito de disciplina férrea que eu tinha através dos meus pais, sobretudo do meu pai. Para o meu pai, eu e os meus irmãos tirarmos um curso e sermos doutorados numa área específica, era o reconforto daquilo que eles não conseguiram fazer para eles próprios. A escola era uma afirmação.

Havia alguma disciplina de que gostava mais?
Costuma dizer-se que nós nascemos com o desporto e a musica/dança no corpo. Mas eu era um bom aluno em todas as disciplinas.

Como é que vai parar ao Sporting com oito anos?
À margem e revelia dos meus pais, que não aceitavam que fosse à experiência para um clube, eu e mais três amigos do bairro resolvemos ir ao Belenenses, pela proximidade e numa altura em que estavam a fazer captações. Tudo à margem e revelia dos meus pais. Conseguimos arranjar boleia. 

Não correu bem.
Nós tínhamos um compromisso entre nós os três: ou ficávamos os três, porque éramos os melhores no bairro e queríamos continuar juntos, ou não ficava nenhum.

Nessa altura torcia por que clube?
Eu gostava muito de jogar futebol mas não tinha clube. Fomos ao Belenenses, que ficou interessado em mim, mas não nos meus amigos. Como tínhamos aquele compromisso, voltámos outra vez para o bairro. Mas recordo que, para minimizar o impacto de dizer ao meu pai que tinha ido ao Belenenses, perguntei ao clube se podia dar-me um passe social, se não me engano o L123. Eles negaram, porque diziam que naquela idade eu tinha de ir acompanhado dos pais.

E depois?
Passado um ano abrem captações no Sporting. Tentamos lá ir. Como a maior parte da minha família era sportinguista, convenci a minha avó, que me deu algum dinheiro. Fiz a viagem com os meus dois amigos para Alvalade. Só que havia muito mais crianças e havia muito mais dificuldades de ficar no Sporting. Mas encontrei pessoas fantásticas - César Nascimento, Osvaldo Silva - que eram os formadores da equipa de infantis. Gostaram de mim e de mais um colega e acabámos por ficar no Sporting. O meu grande problema era dizer em casa, ao meu pai (risos).
Como foi?
Correu bem, porque houve uma reunião de família à noite e puxámos o assunto. Como os formadores tinham mesmo de falar com os pais, porque o Sporting era muito exigente em relação à assiduidade, à escola, etc., conseguiram convencer o meu pai. Além de ele ser sportinguista, via aquilo também como uma forma de disciplinar, através do futebol, a parte escolar. E comecei a minha formação no Sporting.

Fez lá a sua formação toda dos oito aos 17 anos, altura em que foi dispensado. Custou-lhe ser dispensado.
A dispensa foi dura, foi fria, foi cruel e coincide também com uma reestruturação do Sporting no seu todo. Lembro-me que a equipa principal tinha contratado o Burkinshaw e ele rapidamente tomou a decisão de reestruturar também a formação.

Neste percurso de formação com que outros jogadores que vieram a ter sucesso se cruzou?
O Figo, fomos colegas desde os infantis. No iniciados lembro-me do Paulo Torres, Peixe e outros. Rapidamente fomos para a selecção. Eu com 15 anos já estava a entrar na selecção de sub-15.

O que sentiu quando foi chamado pela primeira vez à selecção?
Foi uma alegria imensa. Entrar na formação da selecção nacional deu-nos uma certa bagagem. A formação da selecção foi feita por Carlos Queiroz, Nelo Vingada, Rui Caçador, etc. No Sporting tínhamos o Aurélio Pereira, o João Barnabé que também eram pessoas que estavam muito ligadas ao conceito de trabalho da selecção nacional. Havia uma boa relação entre clube e selecção naquela altura. Portanto, crescemos numa metodologia de trabalho transversal de Carlos Queiroz.

É verdade que chegou a trabalhar com o seu avô?
Sim. Foi quando andava no preparatório. Eu treinava no final do dia no Sporting, de manhã levantava-me cedo para ajudar o meu avô que trabalhava na EDP. Lembro-me que íamos para a central da EDP, no Carregado. Ainda ia à escola e depois aos treinos. Chegava a casa cansado. Além de o ter ajudado no Carregado, depois ele foi transferido para o Museu de Electricidade. Restaurámos o Museu de Electricidade, em Belém. Foi na altura do incêndio do Chiado, lembro-me das sirenes dos bombeiros que passavam por ali.
Quando deixa a escola em definitivo?
Fiz o secundário em Caxias, mas tornou-se incompatível com o futebol e fiquei com o 11.º ano. Ainda tentei estudar à noite, mas não consegui completar o 12.º ano. Era mais para satisfazer os meus pais, porque, para o meu pai, acima de tudo era importante que tivesse conseguido tirar um curso.

Quando foi dispensado pelo Sporting, passou-lhe pela cabeça desistir do futebol?
Eu via-me a chegar à equipa principal e com 17 anos ser interrompido nesse sonho, foi um duro golpe, provoca desânimo. É uma idade de instabilidade, pode dar para os dois lados, até porque eu tinha a essência de bairro enraizada, continuava a ter os amigos de bairro. Se eu não tivesse a estabilidade familiar para me "amarrar" naqueles momentos e continuar a dar-me a direcção justa, se calhar podia ir para um outro caminho como foram alguns amigos daquela altura. Sempre fui uma pessoa muito controlada pelos meus pais. Mas essa dispensa provocou-me um dano do ponto de vista motivacional enorme. Se não fosse a minha família naquele momento, possivelmente não teria feito o percurso que fiz.

Como vai para o Estrela da Amadora?
Era um clube periférico que angariava as dispensas dos grandes. O Estrela fomentou uma formação extremamente competitiva com os "rejeitados", com os dispensados dos grandes de Lisboa, do Benfica, do Sporting e naquela altura do Belenenses. Como o clube na zona periférica onde podíamos continuar a competir era o Estrela da Amadora, fui lá. Era uma estrutura próxima da escola, próxima da minha família, e isso era importante porque facilmente a família podia dizer não jogas mais futebol, vais dedicar-te apenas à escola. E eu queria mostrar que a dispensa tinha sido um erro.

Quem eram os seus ídolos nessa altura?
Os jogadores seniores do Sporting. Visto que fui formado na zona central, gostava do Venâncio, do Carlos Xavier, do Silas, do Douglas.

Faz a segunda época de juvenil já no Estrela Amadora?
Sim, e na primeira época júnior sou chamado aos seniores, pelo Manuel Fernandes, cujo adjunto era o José Mourinho. Depois foi muito rápida a minha ascensão porque de facto eu tinha talento e precisava de ser potencializado. Comecei a jogar muito cedo no Estrela Amadora, foi isso que chamou a atenção.
Quando começa a ganhar dinheiro com o futebol, ainda é no Sporting?
O Sporting dava ajudas de custo, mas sempre muito controladas pela minha família. Eu cresci com pouco e tudo o que podíamos retirar para ajudar a família era extremamente importante. Ajudas de custos eram mesmo para ajudar os demais. O primeiro semi-contrato profissional foi no E. Amadora. 

Lembra-se do valor do seu primeiro ordenado?
Acho que eram 100 contos (500€).

Houve alguma coisa que quisesse ter e que com esse dinheiro tenha comprado?
Eu, entretanto, fui viver para a Amadora com um colega de equipa, partilhámos um apartamento. É nessa altura que largo a escola. Porque profissionalizo a minha carreira. O primeiro clube pelo qual joguei internacionalmente foi o Estrela da Amadora, nomeadamente a Taça UEFA. Tinha 18 anos e aí já tenho um contrato profissional porque acharam que eu era um jogador que podia dar retorno e foi isso que aconteceu.

Lembra-se da primeira namorada?
Lembro. A minha primeira namorada até surge pelo hábito da minha família de irmos à Igreja. Eu fiz tudo, o catecismo, a primeira comunhão, tudo. O meu pai era férreo nisso. A minha primeira namorada conheci na igreja. Também frequentei os ranchos folclóricos de Queijas (risos). Mas o engraçado é como conheço a mãe dos meus filhos.

Conte.
Os meus pais, já com a minha ajuda, conseguem entretanto fazer um empréstimo para comprar um apartamento em Queijas, que estava próximo dos meus avós. Lá está, a ideia de reunir a família. Foi quando comecei a subir na carreira e, como às vezes ia lá ter com eles, começo a frequentar uma determinada zona de Queijas onde reencontro a minha ex-mulher. Eu explico: quando era miúdo e ia com os outros miúdos jogar futebol na praça em frente à Igreja, lembro-me de a ver passar com uma amiga e de dizer "um dia ainda vou namorar aquela loira que está ali a passar" (risos). Quando fui para o Benfica, a partir daí, como a maior parte dos meus amigos eram de Queijas e eram do Benfica, começaram a ir ver os jogos e comecei a cimentar a minha relação com a Sónia.

O que fazia ela?
Ela estava a tirar um curso de artes gráficas que depois ficou interrompido. Acabámos por nos envolver e fui pai muito novo.
Já lá vamos. Como surge a ida para o Benfica?
Quando comecei a despontar como um talento na Amadora, havia clubes que tentavam angariar os jovens a essas equipas de menores condições digamos assim. Lembro-me que o Vitória de Guimarães do Pimenta Machado esteve interessado em mim, o Boavista do Valentim Loureiro também. Mas o Estrela da Amadora foi sempre muito resistente e não quis ceder, porque achava que ia aparecer um grande mais tarde ou mais cedo, e com isso os dividendos seriam maiores. E tenho um possível regresso ao Sporting.

Como assim?
O Sporting manifesta interesse, neste caso o Sousa Cintra. Temos uma reunião no restaurante Lagosta Real, com o Sousa Cintra, onde estava também o Paulo Bento e o Abílio Fernandes. Estava praticamente consumado o regresso e a ida do Paulo Bento. E alguma coisa inesperadamente não corre bem e passado dois dias assino pelo Benfica.

Mas o que é que não corre bem?
Naquela altura eu era um jovem e quem estava a controlar toda a situação era o meu clube, o Estrela. Há a passagem do Jesualdo Ferreira do Estrela para o Benfica para ser adjunto do Toni e foi um procedimento rápido.

Gostava de ter voltado ao Sporting?
Eu fiquei sempre com aquele sentimento de injustiça por ter sido dispensado. Mas o percurso é o que é. Se não aconteceu foi por alguma razão. Eu queria chegar a um clube grande, eu queria trabalhar em melhores condições. Era a minha ambição máxima naquela altura. E desde que o Estrela também fosse salvaguardado...Se calhar o Estrela teve melhores condições em relação à oferta do Benfica do que aquela que estava prevista no meu regresso ao Sporting. A minha vontade era uma vontade menor porque não deixo de ser um jovem, tinha 19 anos. Continuava na selecção. Eu estive nos sub-15, fui campeão da Europa de sub-16, vice-campeão europeu de sub-17, vice-campeão da Europa de sub-18 e sou campeão do mundo de sub-20, em Lisboa. Fiz essas etapas todas, com Carlos Queiroz. Por isso era natural que um dos grandes mostrasse interesse.

Como foi passar de uma estrutura e de um balneário com o do Estrela para o Benfica?
Foi um impacto tremendo. Até porque eu tinha um jogador no Benfica que para mim era não só do ponto de vista do perfil, forma de jogar, presença em campo, alguém que sempre admirei, e tinha o poster dele no meu quarto, o Carlos Mozer. Lembro-me de muitas vezes passar na 2ª circular na zona de Benfica e pensar "um dia vou jogar aqui". Alimentava o desejo de um dia jogar no Benfica e aconteceu. Voltando ao Benfica, estamos a falar de tempos em que os balneários tinham jogadores marcantes, míticos. Eu era um miúdo que chegava ali.

Teve ajuda de alguém em especial na sua integração.
Do Eusébio, porque eu era mais um moçambicano que ia para o Benfica. Eu via no Eusébio uma figura paterna. Ele amparou-me, dava-me conselhos. Já tinha sentido isso no Estrela com Augusto Matine, que também foi uma figura paternal. Sempre tive à minha volta pessoas que tiveram um carinho especial por mim, por sermos moçambicanos ou por termos uma vida semelhante, de virmos de bairros mais pobres e tentarmos afirmar-nos nos clubes grandes. E também havia o meu lado competitivo. Adorava o treino, era muito competitivo.
O facto de ter ido para o Benfica tão novo, a ganhar mais, não levou a um certo deslumbramento? 
Não posso dizer que tenha tido um deslumbramento com o dinheiro. É lógico que a vida ganha outros contornos porque podemos ter uma vida mais confortável e isso acontecendo, vamos vivendo de acordo com o que conseguimos.

Qual foi a primeira extravagância que fez?
No bairro o meu sonho era ter uma bicicleta BMX com pneus amarelos. Acabei por ter, dada pela minha avó, como prémio de ter tido boas notas. Era tudo como compensação de ter conquistado alguma coisa. Quando fiz esse semi-contrato com o Estrela o meu sonho era ter um carro e consegui depois comprar um carro, um Suzuki branco. Tinha também como sonho ajudar a minha família, daí que tenha contribuído para o apartamento de Queijas, porque queria dar estabilidade e unir a minha família. Depois foi a evolução normal das coisas. Claro que fui para o Benfica com outro tipo de condições que me permitiram crescer.

Entretanto nasce o seu primeiro filho.
Sim, o David nasceu em 1993. Recebi a notícia de que ia ser pai na primeira época, no primeiro estágio que fiz com o Benfica, na Suíça. A minha relação com a minha ex-mulher na altura era uma relação de namoro, éramos miúdos, éramos jovens. Ela telefona-me a dar a notícia e eu assumi. Não estava à espera.

Viviam juntos?
Não necessariamente. Tivemos aconselhamento dos pais de ambos, porque eram decisões que marcaram o percurso de uma vida. Quando voltei do estágio da Suiça pedi ao Benfica que procurasse uma casa para nos unirmos e vivermos em conjunto. A partir daí foi no Estoril que fiquei a viver. Assisti ao parto do David. Em termos desportivos estamos a falar da época 1993/94, que foi a época que coincidiu com Toni e Jesualdo, e em que fomos campeões. Mas foram momentos difíceis, porque eu era o jogador mais novo - eu e o Rui Costa -, e lembro-me de, no antigo estádio da Luz, ter sido um dos jogadores muito criticado pelos adeptos nos primeiros seis meses.

Porquê?
Eu acho que houve sempre ali, para algumas posições... Quando fui para o Benfica, foi para jogar a lateral direito. O lateral direito na altura era o Veloso, que passou para lateral esquerdo. Depois como tinha uma certa polivalência, joguei no meio campo, joguei a central também, e isto era um lado muito rico para qualquer treinador quando havia problemas de balneário em termos de lesões. Mas os primeiros seis meses foram extremamente difíceis, porque passar do Estrela para um clube grande como o Benfica não é fácil e o clube também vivia alguma instabilidade. Mas lá consegui dar a volta ao contexto.
Em 1993 é chamado à selecção A pela primeira vez.
Essa é outra coisa que nunca se fala. Eu talvez seja o primeiro jogador, ou um dos poucos jogadores, que tenham sido chamados à selecção A, estando na II divisão, por ainda estava no Estrela. Por conhecimento do Carlos Queiroz da minha formação. sou convocado ao Suiça-Portugal, jogo como titular e fui eu que fiz o cruzamento para o Semedo marcar o golo de Portugal. Se não me engano, empatámos. Tinha 19 anos e passados seis meses é que vou para o Benfica. Mas a estreia ainda é como jogador do Estrela.

Na segunda época do Benfica apanha o Artur Jorge, certo?
Sim. Eu nesse ano sou considerado inegociável porque tivemos um impacto muito grande na Taça das Taças. Lembro-me que havia três equipas do grupo Parmalat: o Benfica, o Marselha e o Parma. Tínhamos chegado às meias-finais com o Parma e, depois da expulsão do Mozer, eu passo a jogar a central nesse jogo e o director-geral do Parma queria que eu fosse para Parma. Mas como era inegociável...

Tinha empresário?
Naquela altura podemos dizer que os clubes é que tinham empresários. O Benfica tinha uma relação privilegiada com Manuel Barbosa e mais tarde com José Veiga. Toda a minha geração de jogadores eram orientada pelo Veiga.

Quando sai do Benfica para o Bari, de Itália, saiu magoado com o Veiga?
Não necessariamente. O Veiga foi meu amigo, como também foi de grande parte da minha geração. No princípio de época fiz uma artroscopia no joelho, no estágio da Suiça, e fiquei no Benfica. De inegociável no ano anterior a questionável e dispensável, porque veio Artur Jorge, que fez algumas contratações e reestruturou o plantel, e ele não contava muito comigo numa fase inicial.

Ouvi dizer que o Artur Jorge o castiga por causa de algumas saídas nocturnas.
Não. Houve muita instabilidade naquele período de afirmação do Artur Jorge, houve muita entrada de jogadores, a saída de muitos campeões nacionais. Eu acabei por ficar no plantel e fui sempre um grande profissional, mesmo não jogando. A prova disso é, que no final da época, quando fui manifestar interesse em sair, porque tinha tido uma época que não estava de acordo com as minhas expectativas, dá-se o empréstimo para Bari, mas sempre numa tentativa de resgatar o interesse do Parma. Aquilo que era para ter acontecido no ano anterior, não aconteceu; o Benfica só viabilizou na altura a saída de Rui Costa para a Fiorentina, não viabilizou a minha saída para Parma.

É o Benfica que lhe oferece a hipótese Bari.
Sim. De alguma forma foi a intervenção do Veiga, que tinha relações privilegiadas em Itália, que consegue essa solução.

É a sua primeira aventura fora...
...Muito difícil.

Queria ir para fora?
O que eu não queria era estar numa situação de não me sentir importante. Acho que isto sempre marcou o percurso da minha carreira. Não foi uma questão de contrato, era acima de tudo uma questão de "eu estou aqui, trabalho, sou válido e quero ser importante, quero jogar". Foi isto que me fez sair do Benfica, porque naquela altura eu não pensava sair do Benfica. Acabei por ser forçado a sair do Benfica.

O que encontra em Bari?
Vou para Itália sem muito conhecimento da zona. O Bari era um clube na zona do sul, com rivalidades muito fortes, entre Bari, Lecce e Nápoles. Numa zona onde havia alguma violência, uma forma de abordar o futebol completamente diferente daquilo que eu estava habituado em Portugal. Tive um choque muito grande com o que encontrei. Na altura, a minha contratação gerava grande expectativa, mas eu fico um ano e a experiência do ponto de vista desportivo não me correu muito bem.

Porquê?
O meu primeiro treinador no Bari, que foi mais tarde treinador no Sporting, o Materazzi, era um treinador muito duro e a componente física e do trabalho não me agradava. Eu senti que o aumento da massa muscular que me queriam incutir naquele momento me deixava muito bloqueado. Depois, a minha mulher que foi durante três ou quatro meses, não se adaptou. Ela nunca teve um espírito, digamos, nómada, tanto que depois nunca mais saiu de Portugal. Isto também teve uma grande influência em mim, porque tínhamos o David muito pequeno e viver em Itália sozinho, naquelas circunstâncias que basicamente era futebol, futebol, futebol... Por isso foi muito difícil naquela fase, naquela idade. Foi difícil eu expressar o meu futebol, o meu potencial.
Acabou por voltar ao Benfica?
Sim. Na altura penso que Toni regressa num outro cargo e está Paulo Autuori a refazer o Benfica. Havia a perspectiva de que eu poderia integrar o plantel de Autuori, mas depois o Benfica cede-me, neste caso a título definitivo, ao Real Oviedo.

E que tal?
O Real Oviedo foi talvez o oxigénio que eu precisava. A Sónia estava mais próxima e eu conseguia vê-los mais vezes e aí recuperei os meus estímulos para voltar a jogar com alegria. É um principado muito bonito, as pessoas são muito acolhedoras e esse carinho fez com que eu expressasse um futebol de muito boa qualidade. Daí que surge o interesse do PSV de Eindhoven, com o Bobby Robson, que era uma das figuras que eu apreciava muito.

Como foi a experiência na Holanda?
Gostei muito. Um clube de outro nível, com uma formação muito boa. Um clube de Liga de Campeões. Fiz um contrato de três anos. Era uma subida de patamar na minha carreira e trabalhar com o gentleman do futebol, Bobby Robson, é um estímulo muito grande.

O que gostou mais de sir Bobby Robson?
O lado pedagógico dele, o entusiasmo com a idade que tinha, a nível do treino. Ele exemplificava as coisas que queria dos jogadores. Era uma beleza ver a manifestação dele, o comportamento técnico dele, com a idade que tinha, era um exemplo, era estimulante, um senhor. E depois foi também perceber a organização, o método, as condições, não faltava nada.

Joga Liga dos Campeões no PSV...
...E jogo contra o Benfica. Tenho uns cruzamentos muito interessantes com a camisola vermelha como costumo dizer (risos). A única camisola que vesti e não era vermelha foi a do Everton, que era azul, de resto todos os clubes por onde passei de alguma forma as camisolas eram vermelhas.

Ficou uma magoa com o Benfica, não ficou?
Não, mas é verdade que eu queria continuar no Benfica. Percebe-se que aquela equipa estava formatada para ganhar uma competição europeia e foi um pouco desmembrada pelas decisões que foram tomadas. Nunca pensei sair do Benfica e tive de refazer a carreira de uma outra forma. Mas sempre senti um carinho dos adeptos do Benfica. Acho que guardam boas memórias minhas, acima de tudo porque era competitivo.

Como acontece a ida para o Everton?
Eu tenho um contrato de três anos com o PSV. Depois do primeiro ano, Bobby Robson começa a ter problemas, sai e entra o belga Eric Gerets. Ele toma decisões de contratações que me fazem perder espaço. E há possibilidade de ir para Inglaterra. Na altura, tenho duas equipas interessadas, uma de Londres, o West Ham, de que gostava muito, mas acabo por ter a intervenção de um amigo que era muito próximo do Walter Smith, o treinador do Everton, e tenho uma reunião com ele em Londres. 

Gostou do futebol inglês?
Os meus sete anos de futebol inglês acabam por personalizar as minhas capacidades atléticas, físicas. Acho que o campeonato que se ajustou mais, em que eu criei mais empatia, pelo meu lado atlético, de intensidade, de entrega, de paixão, foi o campeonato inglês. Senti isso de uma forma muito diferente dos outros países. A historia do Everton é engraçada e é preciso perceber as diferenças visto que joguei no Everton e no Liverpool. Eu fui um dos primeiros jogadores negros a jogar no Everton. Havia poucos negros dentro da cidade de Liverpool que eram adeptos do Everton, e nomeadamente jogadores, porque o Liverpool era um clube muito mais multirracial. Mesmo na cidade, a zona de Anfield e a zona de Everton também têm essa história. Ter sido tão aceite no Everton, da forma como fui, foi muito bom.

Alguma vez sentiu ou foi alvo de racismo?
A questão do racismo no futebol é complicada. Temos de saber dissociar porque é um campo muito fácil de manifestação, às vezes de frustrações pessoais, profissionais. O campo apresenta-se quase como um estado livre de manifestação dos adeptos, buscando alvos. Mas isso também se pode chamar clubite. Pessoalmente não posso dizer que tenha sentido racismo. Vejo mais como clubite e forma de provocar uma reacção.

E fora de desporto nunca foi alvo de racismo?
Se calhar a forma mais silenciosa do racismo é a inveja.
Nunca se sentiu refém da sua imagem ou que houvesse um pré julgamento por causa da sua imagem? 
Quando adoptei uma certa irreverência, da imagem, que suscita nas pessoas um pré-julgamento, há coisas boas e coisas más. Eu quebrei uma regra de uma mentalidade conservadora que existe no futebol, por ter pintado o cabelo. As regras do futebol às vezes não permitem o gosto pessoal. Deixei de ir para vários clubes só pelo meu cabelo. Tive propostas de clubes que punham em cima da mesa uma condição: que eu alterasse o meu estilo.

Pode dizer que clubes?
Não. Clubes europeus. E a única coisa que acontecia na mesa de negociações era isto: eu apertava a mão às pessoas e dizia nós vamos encontrar-nos um dia como adversários. Literalmente. Essa resistência de ter permanecido refém de uma determinada imagem tem um motivo. E o motivo é o Euro 2000.

É quando surge pela primeira vez de cabelo pintado.
Sim. Eu era uma pessoa de grupo, gostava de alimentar a empatia de grupo. Faço uma coisa espontânea para uma brincadeira de grupo. Fui a uma cabeleireira amiga de muitos anos, na zona de Algés, e disse-lhe: "Eu quero mudar a minha imagem e pôr uma cor no cabelo". Foi uma brincadeira. Aquilo que sei hoje é que quem me dera que há 18 anos tivesse uma maquinaria por trás que me tratasse da imagem porque podia ter tirado muitos mais dividendos. Criei uma personagem, contraditória à minha forma de ser, porque até serviu um pouco de escudo, que resultou por um lado. Mas aconteceu apenas como uma brincadeira de balneário. Quando fomos para estágio eu apareci com o cabelo pintado. Foi uma gargalhada entre os nomes e os apelidos que me colocaram (risos). 

Recorde lá alguns.
(risos). Eu tinha o cabelo todo espetado e havia quem me chamasse "o Ananás" (risos).

E o seleccionador, o Humberto Coelho, o que lhe disse?
Ele era uma pessoa que dominava bem os balneários, achou normal. Agora dentro do grupo aquilo foi uma risada.

A verdade é que nunca mais largou esse visual. Porquê?
Vou dizer qual foi o lance e talvez o momento mais importante da questão de manter-me com o mesmo visual. Eu fui castigado injustamente depois dos acontecimentos do Euro 2000. Porque se falarmos no aspecto desportivo, que é aquela pergunta intemporal, se foi penalti, se não foi penalti; se fosse na área francesa marcava ou não marcava, etc. De facto eu sou a única pessoa que posso dizer que não foi intencional, mas que a bola bateu-me na mão. Depois, podíamos entrar noutras considerações, se fosse na área francesa se se marcava, se o árbitro viu o lance, se não foi pressionado pelos jogadores franceses, etc.

Mas continua a garantir que não teve intenção?
Aí é que está. Posso dizer assumidamente que a bola bateu-me na mão, mas eu nunca tive intenção de tocar. Mas bateu-me na mão, é um facto. A questão de intencionalidade. Se eu pegar numa bola e estiver a 10 metros e simular que vou chutar contra o corpo de uma pessoa, sabendo que a deslocação da bola é mais de 100km/hora, a pessoa tem de ter um instinto, um reflexo. Agora, na envolvência do jogo, no meu posicionamento de tentar interferir e tapar o ângulo de golo iminente, sabendo que a disposição dos braços é ao longo do corpo, porque naquele momento não temos nenhum pensamento de colocar as mãos atrás das costas, os calções não têm bolsos, portanto é normal que as mãos fiquem ao longo do corpo, foi penálti. Para mim, foi uma má decisão, influenciada por outros interesses. Mas o que foi mais grave é o que vem depois. Temos uma acção em campo desportiva, que é o penalti, e temos duas acções disciplinares que neste caso têm a ver com Paulo Bento e Nuno Gomes, que são actos visíveis e punidos perante a disciplina. Temos três castigados. Depois do rescaldo do jogo foi visível para toda a gente que os jogadores portugueses, à boa maneira latina, foram protestar com árbitro. É lógico que os meus protestos com o árbitro são em português, e na linguagem normal de futebol, porque nós estávamos a sair do Europeu naquelas condições. Repare, a UEFA tinha alterado o regulamento e estava em vigor o golo de ouro, que nem deixa podermos recuperar o resultado. Uma regra que nem teve seguimento sequer, acabando por ser retirada.

Considerava-a injusta?
Era uma regra demasiado cruel. Mas o mais engraçado é que aquelas manifestações todas se arrastam para a parte não visível, que é o túnel. Houve confusão de túnel. Hoje em dia nós sabemos que temos as câmaras nos estádios e houve uma grande evolução da tecnologia para identificar as acções. Eu não estou em nenhum momento, em nenhuma acção de túnel. Eu estou na acção visível de campo e nada mais. À partida só posso ser julgado por aquilo que se viu em campo. Penálti ou não. Porque eu sou o primeiro jogador que sai a correr depois e vou fechar-me na casa de banho a chorar pela forma como as coisas aconteceram.

Não esteve na confusão do túnel?
Se me perguntasse a mim quem esteve na confusão eu poderia dizer, mas eu nunca o disse. Porque se há alguma pessoa que pode falar do processo na íntegra, do princípio ao fim, sou eu. Eu fui até ao fim e foi-me dada razão, foi feita justiça, porque recorri da sentença. Lembro-me que estava no Algarve quando me notificaram, dizendo que ia ser castigado. Eu fiquei surpreendido. Porque jamais na minha vida pensei que podia ser castigado por ter feito o penálti. Como é que posso ser castigado por ter feito o penálti? Já fomos punidos.

Mas esteve a discutir com o árbitro.
Foi visível. Todos nós estivemos a discutir com o árbitro. Mas o que é engraçado é que o árbitro alega no seu relatório que houve agressão no túnel.
E não esteve nessa situação?
Não. Mas sei que houve, sei quem esteve, sei quem participou e também sei quem agrediu, mas não fui eu. O árbitro fez o relatório do ato disciplinar do Paulo Bento, o do Nuno Gomes e fez o relatório daquilo que aconteceu no túnel. Eu não estava no túnel, portanto não posso ter agredido o árbitro. Estou no Algarve de férias e ligam-me dizer que tenho de ir à sede da FPF para uma reunião de emergência porque tinha sido castigado com nove meses de suspensão. "O quê? Desculpe lá mas devem ter-se enganado no jogador ou nos jogadores. Como é que eu posso ser castigado? Fundamentado em quê?". Venho a Lisboa, tenho uma reunião na FPF com o presidente Madaíl e respectivos advogados. E quem se faz presente? O Nuno Gomes, que naquela altura estava em Itália, mas sem representação da Fiorentina; o Paulo Bento, que estava representado com o Sporting e eu. O Everton não quis participar, embora moralmente estivesse a apoiar-me. O Paulo Bento e Nuno Gomes apanharam sanções de seis meses.

O que aconteceu nessa reunião?
Daquela reunião entendi que a defesa ia ser muito difícil, mas também assumi que iria até às últimas consequências. Foi quando um grande advogado internacional, que mudou o futebol com a Lei Bosman, o Jean-Louis Dupont, me liga. É uma pessoa conhecedora do aparelho da UEFA. Diz que quer defender-me. Tenho dois recursos dentro da jurisdição da UEFA, nos quais a pena se manteve. Fomos ao TAS (Tribunal Arbitral do Desporto) em Lausanne, a última instância, onde basicamente depois de seis meses, de alguma forma foi feita justiça. Ou seja, a pena foi suspensa. Basicamente foi dar-me razão, que de facto não fiz rigorosamente nada à margem daquilo que foi o jogo. E na altura o árbitro também se fez presente, arrolou-se como testemunha, e ele próprio falou sobre as circunstâncias da situação. Só que entre a justiça que foi feita e o dano causado em termos de imagem, em termos contratuais, porque eu não deixei de ficar inviabilizado de jogar a nível internacional... Porque dos jogadores daquela selecção, daquela geração, depois da grande prestação do Euro, 14 deles foram para clubes e com contratos mais valorizados, pela prestação da equipa. E eu fui o único jogador que não fui, porque nenhum clube que estava interessado em contratar um jogador que estava castigado.

Sentiu-se revoltado.
Há uma revolta interior que fez-me estar focado em querer justiça, e que levou à minha passagem para o Liverpool. Quando passo para o Liverpool sou novamente chamado à selecção nacional.

Disse que o árbitro esteve presente no TAS, ele continuou ou insistir na versão dele?
Não, ele depois aceitou que me tinha confundido. Só que esse árbitro nunca mais apitou. Também é um dado interessante.

Chegou a perceber o que se passou em concreto? Foi mesmo um engano ou foi um engano propositado?
Até pela pessoa em causa que me defendeu e pelas informações que eu ia tendo, é óbvio que houve algo que não correu tão bem. Mas é uma situação sobre a qual jamais irei falar concretamente.

Sente que foi prejudicado para outro jogador não ser prejudicado?
Não. O que eu sei é que quem cometeu esses actos não foram castigados. Mas sempre preservei para mim que, o maior significado, é quando durante quatro minutos tudo para para cantarmos o hino. Eu sempre respeitei, independentemente de pessoas, o significado de jogar pelo país; perante isso, jamais irei falar nos acontecimentos, da verdade do Euro e dos castigos objectivamente. Já passou.

Mas, como disse, prejudicou-o.
Temos de saber dar a volta a alguns momentos negativos na carreira ou na vida, feitos por outros ou por nós próprios. Não temos outra solução. E buscar soluções não têm necessariamente com atingir outros.

Houve alguém do meio que lhe tenha dado um apoio maior?
Eu tive uma pessoa, que respeito muito no espaço da selecção, o Carlos Godinho, que foi a pessoa que durante o processo teve a consideração de ligar-me e perguntar como estavam as coisas e confortar-me em alguns momentos. Isso foi importante. Foi o único durante o processo. Por outro lado, no meu regresso à selecção foi muito engraçado ver e sentir os abraços.

Sentiu hipocrisia?
Não, foi muito engraçado, porque eu não deixei de cantar o hino 75 vezes, em todas as camadas da estrutura da federação. Quando voltei, eu também sorri. Sorri porque para mim a minha maior alegria com 27 anos era dar continuidade à minha carreira internacional, que coincidiu neste caso com a preparação do mundial 2002. Eu sempre quis voltar à selecção. A travessia solitária que vivi na minha defesa, o meu único objectivo, o meu único foco, era voltar à selecção nacional. Era chegar a um clube e voltar à selecção. E voltei.
Foi ao mundial da Coreia e do Japão. Que memórias tem dessa fase final?
Há sempre ilações e reflexões que devemos tomar a vários níveis. A nível estratégico, de planeamento, de lideranças, até os próprios jogadores, todos, todos os agentes que estão envolvidos no futebol devem tentar perceber porque é que uma geração campeã do mundo em 1989 e 1991, levou nove anos, até 2000, para chega a uma meia-final. Enquanto a grande rival, em termos de formação, que foi sempre a França, nos mesmos nove anos ganhou dois europeus e um mundial. Quando falamos em rivalidade, que vem desde a formação, que existe e que existiu e que de alguma forma a vitória desta geração de Fernando Santos vingou... há um histórico, há um passado. E é perante esse passado que não tenho dúvidas de que a estrutura actual cresceu, aprendeu seguramente de muitos erros que foram feitos aos mais diversos níveis. Agora, acho que se perdeu um momento muito importante com a nossa geração. Porque a nossa geração gerou uma enorme empatia com o povo português, mas não ganhámos nada. Éramos uma geração extremamente competitiva, e a gestão de um grupo tão competitivo era muito difícil, porque a maior parte dos jogadores naquela altura jogava nas maiores equipas a nível de clubes, mas verdadeiramente como selecção falhamos.

E consegue explicar o falhanço no mundial de 2002?
É uma pergunta difícil, porque está a fazer uma entrevista a uma pessoa que passou por todos os momentos mais polémicos do futebol na primeira pessoa, dentro das estruturas. Acho que todos falhámos no processo. Há uma coisa que é indiscutível no mundo do futebol: os grandes protagonistas e a parte mais visível, que faz as coisas acontecerem são os jogadores, mas isso não quer dizer que por trás, a nível estrutural, de planeamento, a nível organizacional, das lideranças, várias, não tenham de estar todos em concordância. Não estivemos à altura por um conjunto de factores. E um dos mais importantes para mim, em busca de objectivos, é seguramente o planeamento.

Em qual dos clubes de Liverpool se sentiu mais confortável?
São dois clubes centenários. Da forma como foi feito, muitos não aceitaram que fosse jogar para o rival no mercado de Janeiro, mas a postura e o trato que tive com a direcção do Everton foram os mais correctos possíveis. O Everton estava a passar por um período extremamente difícil a nível financeiro, eu estava a acabar o meu contrato, faltavam seis meses, e basicamente entre o Everton receber uma comparticipação dos seis meses de contrato e eu sair livre porque não conseguia renovar o contrato pelos problemas financeiros, o processo foi linear, correto.
“Vivi na pobreza no Jamor, convivi com o Beckham, jantei com o Cruise e o De Niro em LA, mas guardo roupa suja do pó vermelho de Moçambique”
Na segunda parte da entrevista o actual seleccionador de Moçambique relembra os dois anos passados em Los Angeles, o glamour de conviver com estrelas como Tom Cruise ou Denzel Washignton e de como os LA Galaxy souberam tirar dividendos da sua imagem. Abel Xavier confessa ainda como sempre lutou pela união da família e de como é cioso da sua vida privada, apesar de ser uma figura pública. Evita o tema da sua conversão ao islamismo e defende que pratica a religião à sua maneira. Explica o castigo por doping e a sua inocência e, por fim, fala com orgulho do trabalho que tem estado a desenvolver em Moçambique como seleccionador, não só no domínio desportivo, como social também

Como passa do Liverpool para o Galatasary?
Jogo a Liga dos Campeões com o Liverpool e, à semelhança do que tinha acontecido quando estava no Benfica, também marco em Leverkusen. Faço um ano muito bom, depois o Gerard Houllier tem um problema de saúde e fica ausente por tempo indefinido. O adjunto toma conta da equipa e resolve dar continuidade a jogadores da academia, da casa; foi quando fui cedido ao Galatasaray.

Que tal?
Foi uma experiência extremamente importante. Fui o primeiro português a abrir portas no mercado da Turquia. Depois houve muitos outros que se seguiram. Simão Sabrosa, Quaresma, Manuel Fernandes, etc. E aconteceu por ter jogado Liverpool-Galatasaray na Liga dos Campeões. Nesse jogo tínhamos cerca de 2000 policiais à espera do Liverpool, quando chegámos a Ataturk, na Turquia, por questões políticas, claro. Era um jogo com grau elevado de risco. E não me esqueço que, quando chegámos ao balneário, começámos a ouvir um ruído como se fosse o império romano (risos). Três horas antes os turcos já estavam dentro do estádio. Completamente lotado. Foi a primeira vez que vivi uma situação tão forte, tão marcante e vi uma forma de estar no futebol diferente, pela paixão que os turcos têm pelo jogo e pelas equipas. De tal maneira que quando chega o intervalo, no balneário, ponho a toalha em cima da cabeça e tenho uma reflexão muito rápida "Quem me dera um dia jogar aqui no Galatasaray". Eu estava jogar numa das melhores ligas da Europa e num grande clube, mas tenho esse pensamento por aquilo que estava a viver, toda aquela dinâmica da envolvência, foi uma coisa que me fez desejar isso.

Foi o que aconteceu. E gostou?
Adorei. É lógico que a vida social fica muito mais limitada porque os jogadores de futebol são muito idolatrados na Turquia. A imprensa é muito agressiva. Mas fui aceite de uma forma única em Galatasaray. Tinha milhares de pessoas à espera e lembro-me que um dos primeiros jogos que fiz foi o dérbi com o Fenerbahçe e acabei por ser um jogador marcante pelo meu lado agressivo, do meu comportamento em campo, muito competitivo.

É nessa altura que nasce o seu segundo filho, o Lucas?
Sim.

Foi um acidente de percurso ou mais uma tentativa de unir a família?
Esta questão do distanciamento da minha família, por razões que a minha ex-mulher evocava, de estabilidade (era filha única e eu compreendo as razões), fez de mim uma pessoa que nos tempos livres vinha constantemente a Portugal. Mas aquilo que queria era de facto juntar a minha família. E isso só vai acontecer de alguma forma, mais tarde, quando ambiciono ir para os EUA.

É no Galatasaray que nasce o seu interesse pelo islamismo?
Esta questão da religião ganha sempre uma grande dimensão quando manifestamos um lado que parece que não é aquele mais normal. Mas eu nasci em Nampula, zona predominantemente muçulmana, tenho família árabe. Depois, eu tive uma orientação a partir do meu pai, católica, em que não tive poder de escolha. Mas o futebol permitiu-me, ao viajar tanto, perceber outras mentalidades, e viver nos países é diferente de passar pelos países. Gostei muito de ter partilhado vivências com as pessoas na Turquia. Mas dizer assumidamente que foi por isso que divulguei uma certa orientação religiosa...Mas não acho que seja uma coisa de uma importância grande.

Só assume mais importância porque o Abel converte-se e faz o anúncio oficial disso através de uma conferência de imprensa.
Sim, mas foi feito de uma forma natural. Nos momentos mais difíceis, naqueles últimos seis meses de castigo, eu passei muito tempo no Oriente, nomeadamente nas férias, porque tenho amigos lá. Falávamos de coisas da vida. Se calhar foi mais alimentada pelas relações que tinha nessa altura. Embora neste tipo de coisas ninguém convence ninguém. Agora acho que devemos ter o poder de escolha. Da mesma forma que respeito outras crenças e orientações, espero que respeitem. É algo meu, é algo pessoal, no qual me manifesto da minha forma.

Mas revê-se mais no islamismo do que no catolicismo?
Não. Vamos lá a ver, se recuarmos um pouco na história, alguma coisa nos fez divergir em vários aspectos que no passado não divergíamos. Se formos à essência tribal, havia muitos mais pólos que nos uniam em termos de uma crença de algo que é único, que é partilhado e expressado de uma ou de outra forma, mas que é único. Muitas das infiltrações que levaram a múltiplas interpretações e à utilização muitas vezes da religião para outros actos, deu-nos uma percepção muito diferente daquilo que é de facto a sua essência, a essência da partilha, do pensamento de ajuda ao próximo, do bem-estar. Mas não posso excluir outras orientações porque também me revejo nelas, há linhas comuns, a raiz é comum.

Significa que não sente obrigação de rezar cinco vezes ao dia, de fazer o Ramadão…
...Eu sigo uma convicção minha, pessoal, sobre a forma de pensar a questão da religião. A forma de estar, de manifestar, de pedir e agradecer, é tudo muito pessoal. Rezo à minha maneira, faço os agradecimentos à minha maneira, peço à minha maneira.

A comunidade islâmica não o leva a mal por isso, por não cumprir os rituais?
Não. Acho que a essência da religião em si, seja ela qual for, é a da aceitação, deve ser de aceitação.

Fica um ano e meio no Galatasaray. Não fica mais tempo porquê?
Eu queria ficar mais tempo, mas o Liverpool não me libertou. Estava na condição de emprestado, voltei ao Liverpool para me libertar da situação contratual e assinar um contrato de três anos com o Galatasaray, mas o Liverpool não me deixou sair. Acabei por ficar e isso coincidiu com o regresso do Gerard Houllier. Mas seis meses depois acabo por sair e é aí que vou para Hannover.
Gostou dessa experiência na Alemanha?
Depois da minha saída do Liverpool era para ter ido para um grande clube europeu em Janeiro, mas as coisas não aconteceram até ao último dia de mercado. E no último dia de mercado, quem me ajudou a encontrar clube, para não ficar seis meses sem jogar, foi o Jorge Mendes. Foi ele que me ajudou naquele momento a dar seguimento à minha carreira, nomeadamente no Hannover, no qual tinha um contrato curto, basicamente de catorze jogos. Mas foi uma experiência que não foi muito boa do ponto de vista desportivo porque joguei quatro ou cinco jogos, depois houve uma mudança técnica, veio um treinador com uma personalidade muito marcada, não queria jogadores estrangeiros, o Ewald Lienen, que só queria jogadores que falassem alemão. E na altura tanto eu como o Jaime, um jogador que estava emprestado pelo Real de Madrid, mais o capitão da Grécia, fomos excluídos do plantel. Portanto fiquei ali três meses meio parado.

Como é que no meio disso surge a Roma?
A Roma... foi engraçado. Tive pessoas sempre pessoas na estrutura italiana que estavam interessadas que eu fosse para Itália. Uma das pessoas que gostava do meu trabalho era o Franco Baldini, que na altura era o diretor desportivo do Roma. E é engraçado que a situação da Roma coincide com a saída do Del Neri do FCP para o Roma. Houve uma conjugação de interesses e vontades.

Adaptou-se bem a Del Neri?
Gostei da filosofia dele, gostei do trabalho, da metodologia. A única coisa é que naquela altura a Roma estava num período de grande instabilidade. Penso que tivemos quatro técnicos. A Roma teve problemas em manter-se na Primeira Divisão e o Del Neri também acabou por sair. Foi uma passagem fugaz e o meu pensamento era voltar a Inglaterra.

Consegue, vai para o Middlesbrough.
Sim, mas foi uma curta passagem também. Mas pelo que representa o Middlesbrough em Inglaterra, a classe laboral, foi extremamente positivo.

Tem um problema de doping quando está no Middlesbrough.
Isso é uma história surrealista, surrealista. Só quem não está no mundo do futebol é que não consegue entender, porque o jogador está sujeito semanalmente aos controlos anti-doping. Quando joguei em Inglaterra, no Everton, tinha-me sido identificada uma insuficiência em determinado grupo de vitaminas. Não sei se foi causado por questões climatéricas ou de falta de absorção de sol, mas tinha uma insuficiência e durante os meus tempos em Inglaterra tomava sempre uma suplementação que era obviamente prescrita pelos departamentos médicos que já sabiam e não havia problema nenhum. 
Tomou no Everton e no Liverpool?
Sim, só deixei de tomar quando fui para a Alemanha e para Itália. Mas quando voltei para Inglaterra, nos registos e nos testes, eu teria que voltar a repor esse suplemento, sob a supervisão do departamento médico do Middlesbrough. Tudo comprovado, estamos a falar de futebol de alto nível, não havia problema nenhum.

Então o que é que aconteceu?
Temos competições europeias, vamos jogar com o Xanthi da Grécia para a Taça UEFA, e o que foi evidenciado é que o lote da suplementação que tomei, tinha películas, fragmentos de uma substância que era proibida. Não estava inserida no grupo das substâncias que estimulava o aumento competitivo ou de massa muscular, mas estava lá. A partir do momento em que saiu o relatório deste controlo que deu positivo, a primeira decisão do clube, do departamento médico e do presidente, que sabiam do meu profissionalismo, foi: “Nós vamos estar contigo. Essas matérias de controlo positivo em Inglaterra são muito delicadas. É mais fácil sair do país do que suportar um atleta em matéria de controlo de doping, mas nós sabemos o tipo de atleta que temos e o exemplo que tu és aqui dentro e vamos dar-te todo o apoio. Moralmente, estamos a teu lado e tu vais fazer a tua defesa”.

O que fez?
Pedi à UEFA que designasse um laboratório para que se fizessem análises aos respectivos produtos e eu próprio submeti-me a uma análise. Assim aconteceu e percebeu-se o que tinha acontecido. Depois, levantou-se outra questão, que fez mudar um bocadinho o rigor da suplementação dos clubes. Muita coisa foi alterada. Porque boa parte dos produtos que existia em casas de produtos naturais, ginásios, e isto foi documentado, para fidelizar as pessoas ao hábito de comprar um produto que supostamente lhes faz bem, continham uma contaminação implícita à adição do mesmo produto. Esse rastreio foi um avanço que se deu na qualidade do produto, na distribuição, na idoneidade das empresas, porque de facto estava a existir uma alteração dos produtos.

Mas chegou a ser castigado.
Fui castigado, estive parado seis meses, mas depois ganhei a causa.

E continua no Middlesbrough ou vai logo para os EUA?
Voltei a Middlesbrough, o meu contrato foi reactivado, voltei a jogar, acabo a época lá, eles ainda querem que faça mais um ano de contrato, mas é quando tomo uma decisão a pensar mais nos aspectos da família, e vou para os EUA. Porque entendi que lá poderia refazer e integrar toda a minha família.
Como é que surge o interesse dos LA Galaxy?
É mais uma daquelas histórias incríveis. Depois de todas essas questões por que passo, ponho na minha cabeça, aos 33 anos, que tenho de ter uma outra experiência e tenho de ir para um país onde possa juntar a minha família. Estou no Middlesbrough e recebo uma chamada de Alexi Lalas, que tinha sido um jogador do Padova. Era um countryman do futebol americano, tinha uma barba muito grande e ia para os estágios da selecção da América com uma guitarra. Nós tínhamos jogado um Bari-Padova com 20 anos, e depois desses anos todos, ele liga-me. É o administrador do Galaxy. Ou seja, houve sempre ao longo da minha vida, alturas em que pensava nas situações e elas surgiam-me de uma forma ou de outra.

O que ele lhe propõe?
Ele diz-me que já tinham contratado o David Beckham e, embora não fosse ainda público, ele seria a imagem global da nova MLS. A estrutura do Galaxy e de todas as equipas franchising, seria a de terem dois jogadores de marketing, por equipa. Como iam ter o David Beckham, ele pergunta-me se eu, como afro-latino e com uma imagem particular, não me queria juntar ao projecto.

Aceitou logo?
Sim. Era aquilo que eu queria de certa forma. Ter uma experiência diferente e poder juntar a família. Aceito ser o segundo jogador de marketing na estrutura do Galaxy só que jamais pensei que eles já tivessem uma estratégia perante a minha imagem. Ou seja, eles tinham estudado a minha imagem ao longo do tempo, e como tinham dentro da estrutura empresarial de Los Angeles, um jogador de basquetebol muito considerado e também com uma imagem muito irreverente, o Dennis Rodman, eles queriam também um personagem dessas na estrutura do futebol. Como eu dominava espanhol, porque tinha jogado em Espanha, e a comunidade mexicana representava 20% da classe trabalhadora de Los Angeles e é apaixonada por futebol, eu seria a pessoa certa. Numa perspectiva de cruzarem indústrias, de acrescentar valor. Era uma outra forma de pensar. Foi uma aventura surrealista a dos EUA.

Mas a família não o acompanha.
Infelizmente é quando se dá a separação definitiva.

O que mais destaca da sua passagem pelos EUA?
Primeiro, o lado organizacional das estruturas americanas; aquilo é de outro nível. Hoje em dias falamos dos direitos de imagem no futebol, mas isso é um acontecimento com 10, 15 anos. Só quem está ou esteve nos EUA é que percebe o impacto da imagem. Quando acabava o treino tinha logo a relações públicas do Galaxy a perguntar-me: “Abel temos aqui uma lista de eventos. A qual é que tu queres ir hoje?” E os eventos eram de outras indústrias, podiam ser eventos de red carpet, de música, de Hollywood. A partir do momento em que eu estava posicionado como estratégia nesses eventos, havia curiosidade em conhecerem-me. E essa curiosidade era traduzida em mais valia para o Galaxy. De alguma forma, movimentei-me nos maiores eventos que só via nas revistas e no cinema. Estive com celebridades que jamais na minha vida poderia imaginar.

Com quem, por exemplo?
Estive perto e convivi com o Tom Cruise, Denzel Washington, Robert de Niro, em jantares, em que falávamos, porque tinham curiosidade de perceber o soccer. Basicamente eram momentos de oportunidade de troca de informações. Também ia a algumas festas temáticas em casa de algumas personalidades. É um mundo muito próprio de relacionamentos, muito dinâmico e que faz as coisas acontecerem, mas que precisa de ser entendido, porque é um mundo aditivo e pode ser perigoso.
É um mundo de sexo, drogas e rock and roll?
É um mundo de muito glamour. É um mundo em que poucas pessoas entram, independentemente do dinheiro que possam ter. Poucas pessoas convivem dentro de um determinado circuito. Eu tive a oportunidade de conviver dentro desse circuito. Mas era apenas um momento.

Sentia-se como peixe na água?
Tive ‘ene’ abordagens para fazer coisas relacionadas com a imagem. Há um determinado momento em que quero estabilizar-me em Los Angeles, porque nesses contactos houve muitas pessoas que tentaram posicionar-me para várias áreas, o que de alguma forma me suscitou interesse. Estamos a falar do mundo das artes, da moda, da música e não há cidade melhor do que Los Angeles nesses aspectos todos. Uma das minhas ideias era poder ter alongado a minha permanência nos EUA para além da minha carreira desportiva.

Isso não acontece porquê?
Um dos motivos foi a entrada de um novo treinador, no último ano, o Ruud Gullit. Eu não tive uma boa relação com ele. Surpreendentemente, foi o único treinador com quem não tive uma boa relação. Não por ter deixado de ser profissional. Penso que quando entrou na estrutura que já existia, queria profissionalizar as coisas de tal maneira... Ele tinha uma forma de liderança muito dura para com os jogadores mais experientes. Oprimindo e falando de uma certa maneira aos mais velhos, para serem exemplo para os mais novos. Acabou por ter consequências. Saí do Galaxy mais cedo do que previa, ele também saiu passado três ou quatro meses.

O David Beckham já tinha saído?
Saiu no final da época, mas o caso dele era diferente porque ele tinha um compromisso que penso ser o projecto que ele vai desenvolver, o franchising de Miami. Era um dos sonhos que ele tinha e que penso vai concretizar no próximo ano.

Gostou do Beckham?
Gostei. Pela figura marcante que é, por aquilo que movimenta, por aquilo que arrasta, acho que não há nenhum jogador no mundo que não gostasse de ter partilhado o balneário com ele. E não só partilhei esse balneário com o Beckham, como partilhei um pouco da vida de família dele, ou seja, aquilo que há atrás do grande cenário.
E o que é que há atrás do grande cenário?
Uma família muito mais simples do que se imagina. Se há um dado que posso retirar também dentro desse glamour de que falámos, e que muitas vezes tem a ver com o vender um determinado produto ou estar com uma determinada pose, aparecer com uma determinada representação, é que há pessoas muito genuínas, muito puras, muito humildes e a família Beckham é uma delas. Gostei do meu relacionamento com ele e com a família. O Beckham também tem a sua história de vida, de percurso, de crescimento e de afirmação. Agora é indiscutível a sua presença e a imagem que arrasta.

Estava a dizer que não fica no Galaxy por causa do novo treinador...
A minha ideia era de adquirir o green card, mas não aconteceu. Embora tenha um visto de longa duração, e continuo a ter as minhas relações e contactos no Galaxy.

Voltou porquê?
Talvez pela minha família, pelos meus filhos. A outra razão foi porque entendi que queria iniciar a minha formação como treinador. Queria voltar a Portugal e queria voltar ao futebol mas em outras áreas.

Foi muito difícil pendurar as chuteiras?
Da forma como a minha carreira evoluiu e cresceu, acho que me preparei para o após. O após é difícil e existem colegas meus que até ficam em estado depressivo e perdem um pouco a orientação de todo o rigor e da disciplina de uma carreira. Acho que, no meu caso, sempre tive consciência de que iria chegar o momento em que era natural ter de pendurar as botas.

Quando regressa a Portugal vem já com a ideia de fazer o curso de treinador ou tencionava iniciar carreira noutra área?
Quando saio dos EUA tenho claramente o objectivo de iniciar a minha carreira dentro da área do futebol. E na altura vou para a Alemanha fazer o curso. Depois, quando volto a Portugal, existe um momento em que grande parte de colegas meus da minha geração conseguem regressar ao futebol como treinadores, e tenho a mesma ambição, entrar como treinador mas com um projeto associado à minha experiência e vivência.
É quando vai para o Olhanense.
Eu queria comprar o Olhanense com um grupo de investidores, porque entendi que só poderia ter estabilidade verdadeiramente se pudesse identificar um clube, uma região para desenvolver aquilo que eu chamo de projecto. Em que eu estivesse dentro do projecto como garante do seu desenvolvimento e com um investidor que fosse forte. Só que o Olhanense já tinha iniciado as negociações com o grupo italiano, para este tomar posição com a constituição da SAD. Eu chego com outro grupo e faço uma oferta de recompra.

Esse grupo era de onde?
Era uma grupo africano das minhas relações. Fizemos uma oferta de recompra das ações, mas o grupo italiano não aceitou porque tinha a sua visão para o Olhanense. Mas fez-me a proposta de ser eu o treinador da estrutura deles. E vejo ali uma possibilidade de entrar na primeira divisão, como treinador. Acautelo as relações com o meu investidor, como é óbvio. Se porventura, ao longo do projeto acontecesse alguma coisa, teria o meu investidor para ajudar. Ou seja, o presidente da SAD é o Igor Campedelli, o director geral era o Miguel Pinho e começámos a estruturar o Olhanense. Tivemos 15 dias para consolidar a constituição da SAD, três semanas para preparar um plantel e mais quatro semanas para fazer uma pré-época na I Divisão. Sou o primeiro treinador do Olhanense nestas condições difíceis. Na altura, tínhamos quatro jogadores com contrato, tivemos que fazer um scouting, e naquela altura era extremamente difícil aliciar jogadores porque já estavam noutras equipas, por isso vieram muitos estrangeiros através da gestão da estrutura italiana. Tenho 20 jogadores que vêm do estrangeiro.

Gerir tantas nacionalidades não deve ter sido fácil.
Nacionalidades diferentes, personalidades diferentes num ano que era o ano zero, de afirmação do Olhanense, numa zona em que se tem de entender bem a relação entre clube e SAD. Todas essas questões têm que estar muito bem niveladas, coisa que nunca aconteceu.

Estreia-se como treinador principal na I divisão, sem passar por outras experiências, como adjunto ou divisões inferiores. Não sentiu falta desse know how?
Somos liderados por muitos treinadores com vários conceitos, várias metodologias, várias formas de trabalhar, em países diferentes. Acabámos por ser treinadores de nós próprios também. Não tenho dúvidas de que há grandes jogadores que podiam ser treinadores, mas às vezes não conseguem porque não sabem transmitir o conhecimento e a experiência aos jogadores. Nesse aspecto sempre soube que tinha capacidade de liderança no que diz respeito a fazer a transição entre aquilo que aprendi e a implementação do que aprendi. Assim como temos treinadores que nunca jogaram futebol, mas estudaram o futebol, e acabam por ser bons treinadores porque conseguem fazer essa transposição. O futebol é uma questão de oportunidade, acima de tudo de oportunidade, depois da estabilidade e das condições. Não é um dado adquirido que alguém que fez uma determinada carreira a nível internacional, não possa pegar numa estrutura e não possa fazer uma carreira a partir de uma I Divisão.
Porque sai do Olhanense?
Há determinadas decisões que podem interromper o percurso daquilo que são os objectivos de uma equipa. Na mentalidade do futebol avaliamos as pessoas pelos resultados imediatos, mas temos que ver as condições. Eu sai à 10.ª jornada porque quis. O Olhanense estava na Taça da Liga, estava na Taça de Portugal e estávamos em 10.º lugar. Eu sabia que, naquele ano, por algumas decisões que foram tomadas administrativamente, iria ser muito difícil a manutenção na I divisão. Tanto que o Olhanense desceu de divisão. Antecipei o cenário. O Olhanense administrativamente toma a decisão de não jogar no Estádio José Arcanjo, ou seja, de não jogar onde as pessoas queriam que o clube jogasse. Toma uma decisão contrária aqueles que eram os meus interesses como treinador. Porque não há nenhum treinador que queira jogar sempre fora de casa, percebendo o que é a zona em si e o que é que significa jogar no estádio do Algarve. Tanto que nessa altura fiz uma conferência de imprensa onde elenquei determinados pontos em relação ao futuro e o futuro veio dar-me razão. O presidente ainda me ligou depois, porque sente que o clube já ia numa direcção extremamente difícil para a manutenção na I divisão. Agradeci a oferta de ele ter pensado, mas recusei.

Como surge o Farense?
Eu estava muito atraído pelo projecto das equipas do Algarve, tinha estudado o campeonato português e as equipas estavam quase todas centradas no centro e no norte. Eu queria com o meu investidor tomar uma posição num clube do Algarve, num projecto que passava também pela angariação e fidelização de adeptos estrangeiros a um clube em Portugal. Era um projecto muito interessante e fui falar com o presidente Barão, do Farense. O Olhanense nunca se tinha posicionado nas questões dos direitos televisivos, mas o Farense tinha um contrato com a BTV que obviamente só poderia ser vantajoso se o Farense conseguisse ter capacidade de subir de divisão. Disse ao presidente que tinha um projecto e um investidor, que esse investidor gostaria de tomar uma posição na SAD a negociar, e que poderíamos fazer um modelo a um ano e meio, estabilizando o clube na II Liga e no ano seguinte tentar investir em conjunto com as melhores condições para ver se o Farense poderia subir à I Divisão.

Ele acreditou nesse projecto?
Acreditou e sou treinador do Farense quando o clube estava em 18.º lugar. Naquele ano conseguimos ficar em 9.º lugar. Quando chegámos ao final da época, é quando se devia falar na constituição da SAD. Ou seja, de eu poder trazer o meu investidor para trabalhar a época seguinte. Aí há o posicionamento de que não se pretende fazer a SAD, não se pretende perder a maioria. A partir daí foi inviável continuar no Farense.

Vai para o Desportivo das Aves à procura do mesmo?
Eu saio e mais tarde vêm os chineses falar comigo para eu estudar um clube e um projecto, não só o seu modelo desportivo, como de sustentabilidade. Das várias equipas que existiam na altura com necessidades de encontrar um investidor, tenho uma reunião com o presidente Armando Silva e o seu advogado. Sento-me com eles, eles apresentam-me o projecto do Desportivo das Aves, um clube que foi sempre gerido por famílias e empresários na zona do norte, onde sempre existiu um rigor no trato com os treinadores, de cumprimento das suas obrigações a nível de jogadores. Foi sempre um clube com referências positivas. Apresento o projecto aos chineses que consideraram a SAD do Aves como o melhor investimento. Vamos para o Aves, sou o primeiro treinador da SAD do Aves. Era um projecto de um ano e meio, teríamos de construir uma equipa. Sou eu que contrato 75% dos jogadores do Aves, não houve nenhuma ingerência. À 5.ª jornada, com dois meses de trabalho, um dos elementos dos investidores chineses veio ter comigo e diz-me que não estavam muito contentes com o trabalho, porque naquele momento deveriam estar na parte alta da tabela, o que é uma coisa surrealista para um clube que tem de gerar empatias com os locais, tem de ganhar o seu espaço. Saí do Aves com dois meses de trabalho. Mas, no cômputo geral num ano e meio, o que é que aconteceu? O Aves organizou-se e subiu de divisão. Ou seja, aquilo que defendia inicialmente como projecto era viável, era possível. O Aves está na 1.ª Divisão.
Como é que chega a seleccionador de Moçambique?
A minha teimosia, o eu querer fazer um projecto de raiz, porque essa foi sempre a minha ambição em Portugal. Estar dentro de uma estrutura, trazer um investidor maioritário e trabalhar em conjunto um projecto desportivo. Faço uma reflexão e aproveitei a vinda do presidente da Federação de Futebol Moçambicana a Portugal. Fui à embaixada moçambicana e pedi para estabelecerem contacto com ele. Tive uma reunião em Lisboa, no hotel Tivoli, e existiu uma comunhão de interesses, entre vontade e necessidade, porque ele estava à procura de um seleccionador nacional. Eu tinha conhecimento da realidade moçambicana porque nunca me dissociei do futebol moçambicano e das condições que havia em Moçambique; tinha lá família, nunca deixei de ir a Moçambique de forma anónima, sabia dos problemas que existiam.

Quando regressou a primeira vez a Moçambique depois de ter saído em 1975?
Quando estou no PSV. Vou ver os meus avós que tinham lá ido de férias. Ou seja os meus avós também têm um regresso a Moçambique depois de 23 anos.

O que que sentiu?
Foi um impacto tremendo; uma coisa é o que se ouve outra é a coisa vivida. Antes de mais, senti um bem estar inexplicável. Vi a minha vida a passar. Saí de Moçambique, vivi nos bairros como o do Vale do Jamor, vivi com dificuldades, vivi no meio da pobreza; voltei para Moçambique vejo um país também com problemas e dificuldades. Posso dizer que estive em Los Angeles, onde há glamour, fato e gravata e salto alto, mas esta tranquilidade... Eu sinto-me bem onde estou actualmente. Quando ouvia os meus avós dizer que a essência e o cheiro de África é uma coisa que fica enraizada... Por muitos países que uma pessoa conheça, África é sempre algo muito especial. Viajei na LAM de Lisboa para Maputo. De Maputo para Nampula apanhei um avião que parecia o avião do Casablanca, com as hélices. Dentro do avião não havia segurança, completamente diferente ao que estava habituado. Quando cheguei, o meu avô veio buscar-me e fizemos uma viagem de 10 horas numa carrinha de caixa aberta. Para mim foi surrealista, não imaginava a condição das estradas, jamais imaginava que depois de escurecer pudessem cair chuvas torrenciais e ouvir ruídos nas zonas circundantes que uma pessoa nem sabia se eram pessoas ou se eram animais. Aquilo para mim foi algo novo. Lembro-me que, quando o meu avô chegou ao aeroporto, estava cheio de pó vermelho. Depois de todas as viagens que fiz, ainda tenho a roupa dessa primeira viagem a Moçambique e não está lavada. Toda cheia de pó, de terra vermelha, ainda a tenho para recordar.

Recebeu o convite para treinar a seleção moçambicana naquela reunião?
Passados dois meses e meio da reunião ele liga-me: “Abel, lembras-te da conversa que tivemos, em Lisboa? Vamos dar continuidade. Gostava que fosses o seleccionador nacional”. Disse que não tinham condições e eu respondi: “Presidente depois da conversa que tive consigo, há dois pilares, o sentimental e o desportivo. Ser o seleccionador do país que me viu nascer e com as coisas que posso aportar acho que não tem necessariamente a ver com as questões económicas. Eu vou poder implantar algo que acho que faz sentido, vou tentar recuperar a crença do povo moçambicano em relação à selecção nacional. Vou introduzir um modelo com o qual me identifico e vamos fazer um contrato de objectivos”.

Conseguiu fazer o que sonhava?
Neste momento, podemos dizer que Moçambique não será o mesmo em relação ao futebol ou ao espaço da selecção, porque descobrimos uma geração nova de moçambicanos. Consegui mapear o país. As selecções são nacionais, não são selecções da capital, esse era um grande problema. Muitas vezes falamos em selecção nacional, mas os clubes da capital fazem refém o aparelho da selecção, portanto não eram selecções nacionais e neste momento já são. Descobri talentos nas províncias e implantei direito de igualdade para os jogadores das províncias poderem representar o país.

Como é que o fez?
Nos primeiros dois anos mexi na estrutura principal. Porque quando as pessoas têm mentalidade resultadista, parece que a formação não existe, querem é o resultado cimeiro da selecção principal. Então, num primeiro momento, tinha que me focar na selecção principal. Tinha de aumentar a competitividade, a selecção tinha de ser forte. A federação tinha os seus problemas por falta de capacidade financeira, condições estruturais, visão de planeamento, então tive que reconstruir tudo. A minha primeira medida de há dois anos foi descentralizar. Era uma medida muito importante porque a selecção jogava só na capital e era preciso envolver as pessoas todas. Reduzir a faixa etária dos jogadores para poder trabalhar durante mais tempo. Neste segundo ciclo fiz a introdução do modelo transversal, ou seja, sou seleccionador nacional mas também sou coordenador geral de todo o programa da formação. Porque entendia que se não houvesse sustentabilidade e continuidade não se constrói nada. As selecções de sub 17, sub 20 e sub 23 estão dentro da mesma metodologia. Neste momento temos sete técnicos, eu formei o técnico moçambicano para que ele pudesse entender a metodologia. Os técnicos da formação são meus adjuntos directos na selecção principal.

São todos moçambicanos?
Dois são técnicos que levei aqui de Portugal e os outros quatro são de lá. Entendo que independentemente do resultado, se porventura um dia tiver de sair, porque nada é eterno, que seja um técnico qualificado moçambicano a dar continuidade.
Acha que a qualificação para o CAN ainda é possível?
Sim. Temos jogo em Março contra a Guiné Bissau e é decisivo para ambas as equipas. Só que há um elemento que poderá de alguma forma influenciar o resultado nacional: nós conseguimos eliminar a Zâmbia do CAN, que é um feito histórico. Nunca tínhamos ganho um jogo contra a Zâmbia, quanto mais eliminar a Zâmbia de um CAN. Foi muito importante e a Zâmbia tem um último jogo com a Namíbia em casa. Por isso se a Zâmbia ganhar à Namíbia, o nosso resultado com a Guiné Bissau poderá colocar as duas equipas no CAN. A nossa vitória ou eventualmente um empate. Mas é um jogo final.

Há muitos jogadores moçambicanos a jogar no estrangeiro?
Neste momento, temos 15 jogadores moçambicanos a jogar fora e 80 jogadores novos seleccionáveis.

Independentemente de conseguir ou não a qualificação, a sua perspectiva é continuar?
O meu contrato termina em Junho. Neste momento, há outras federações que também manifestaram interesse. É lógico que a minha prioridade será sempre Moçambique, independentemente de chegarmos ou não ao objectivo da qualificação. É sempre um projecto de continuidade. Agora, cabe à federação moçambicana pronunciar-se. Acho que eles estão à espera dos acontecimentos de Março, porque se nos qualificarmos será um feito muito importante para o país, num ano em que existem eleições no país e na federação. Mas há aqui um dado que gostava também de dizer.

Força.
O futebol são resultados, mas o impacto do futebol na sociedade é extremamente importante. Procurei que o povo reconhecesse que a selecção é sensível às causas sociais. Nunca a selecção moçambicana tinha ido a orfanatos, hospitais, universidades. Estamos a fazer isso. Essas medidas em África são extremamente importantes para o reconhecimento de que o futebol está inserido na sociedade e conhece os seus problemas. Quando vamos a um hospital fazer doação aos incapacitados e às pessoas que sofrem, nós envolvemos personalidades de outras áreas, dos ministérios. Penso que é uma alteração de mentalidade e uma maneira de ver o futebol e de usar, neste caso o futebol também, em prol de outras questões.

É disso que mais se orgulha no trabalho que está a fazer?
Sim. O crescimento competitivo tem a ver com isto tudo. Conseguimos fazer a descentralização e a internacionalização. Fizemos um jogo em espaço neutro, em Portugal, no ano passado, o Moçambique-Cabo Verde. Pela primeira vez 17 jogadores da selecção de Moçambique vieram a Portugal. Conheciam Portugal só pela televisão, pelo campeonato nacional português. Benfica, Sporting, FCP vive-se exactamente a mesma clubite em Moçambique. Conseguimos vir estagiar em Portugal, consegui trazer os jogadores para virem conhecer a história do Benfica, por onde passaram moçambicanos, como uma via motivacional de treino. Fomos ao Sporting e fizemos o mesmo feito. Para mim, é um dado que me enriquece do ponto de vista humano. Jamais a empatia que tenho com os jogadores poderá ser quebrada pelo mau resultado, vai haver sempre o reconhecimento. Acho que é aí que nasce a força de um grupo, é aí que nasce a força de uma estrutura. Se entendermos que é só o resultado que nos valoriza…

Qual é neste momento a sua maior ambição profissional?
Gostava muito, com uma estrutura africana, de fazer impacto no Mundial. Quando estamos a falar em grandes jogadores nas equipas internacionais, quando vêm para os países muitas vezes vêm sem humildade, vêm com sentimento de superioridade precisamente porque estão afastados das questões sociais dos seus países, dos problemas, da pobreza que existe nestes países.

Onde é que ganhou mais dinheiro?
O dinheiro é tão subjectivo... Mas foi nos meus anos em Inglaterra. Foram os meus anos mais produtivos.

Qual foi a maior extravagância que fez até hoje?
É verdade que já tive um Lamborghini, já tive alguns carros bons, mas as maiores extravagâncias se calhar foram outras. Eu gosto de tratar muito bem as pessoas de quem gosto e que estão a meu lado e não vejo limites quando gosto de uma pessoa. As coisas que gosto de fazer verdadeiramente tem que ser com alguém.

Quantas paixões teve na vida?
A fase do enamoramento suscita sempre paixão, portanto todas as relações que tive, tiveram paixão. Agora se me perguntar se dentro das minhas paixões tive uma que foi uma história de alguém que me tocou verdadeiramente. Só posso dizer uma. Mas não vou dizer o nome.

Vive com alguém neste momento?
Neste momento, tenho um relacionamento mas vivo sozinho.

O que fazem os seus filhos actualmente?
O Lucas tem 15 anos e joga na formação do Estoril. Tem qualidades mas obviamente sou suspeito para falar sobre isso. O mais importante é que ele tenha estabilidade escolar.

Revê-se nele?
Em muitos aspectos, sim. Ele tem ali alguma coisa. Mas é muito difícil chegar a determinado patamar e hoje em dia é mais difícil ainda. Quando falamos dos miúdos da formação, a formação está tão descaracterizada em relação a determinados valores do passado que muitas vezes tem que se formar também a cabeça dos pais. Muitas vezes os pais pensam que os filhos vão ser a solução dos seus próprios problemas e não é fácil. E eu sabendo que não é fácil tento ajudar o meu filho para que as coisas sejam equilibradas dentro do panorama da estabilidade familiar. É um excelente aluno.

E o David?
O David está com 25 anos. Foi desde muito novo um miúdo afastado do desporto, neste caso do futebol. Desde muito novo que constatámos que ele tem uma curiosidade e uma capacidade anormal para memorizar coisas. Ele foi um dos alunos mais brilhantes em termos de tecnologia na sua formação, eu estou orgulhoso por esse facto. Neste momento está a trabalhar no Banco de Portugal, numa área onde está a liderar uma equipa de 10 pessoas. Acho que é um miúdo dotado de uma capacidade, não sei de quem, não foi seguramente nem da mãe, nem do pai (risos). Já está a voar sozinho mas sempre com minha supervisão.

Qual foi o maior amigo que fez no futebol?
Essa é uma boa pergunta. Há muitos conhecidos como é óbvio. Há muitas pessoas que considero, e talvez eles não saibam que os considero tanto. Sei que também há muita gente que me considera, que me conhece melhor do que aquilo que é público. Mas acho que as amizades genuínas não têm nada a ver com o futebol.

Alguma vez fez algo ao cabelo que não tenha gostado?
Claro (risos). Houve um momento quando exercia em Portugal a minha carreira como treinador, que pintei o meu cabelo de cor natural outra vez. Porque parece que tem que ser um requisito também aqui, na nossa mentalidade, se quero ser treinador em Portugal. Durou 15 dias, depois disse “Não, tenho que ser igual a mim próprio”. Uma vez disse que sou refém daquilo que criei. E de facto é verdade.

E as tatuagens?
Tenho várias e com grande significado. A maior fiz nos EUA, no LA Ink. Não foi filmado, mas fiz com a Kat que aparece no programa de televisão e demorou quatro meses. Teve a ver com a minha separação. Foi a minha terapia da separação. Uma tatuagem que demorou quatro meses.

Que tatuagem é essa?
São umas asas, nas costas, que tem a ver com a liberdade, o voar e paz. Abro os braços e desde os braços até às costas, tenho asas. Também tenho no braço uma frase que representa aquilo que sou “I am what i am”; tenho o nome dos meus filhos abreviado e depois tenho uma história bonita, que tem a ver com uma pessoa.

Foi público o relacionamento com a Oceana Basílio mas houve vários boatos de que teria um relacionamento com a Bárbara Guimarães e com a ex mulher do Deco. De que forma é que lidou com isso?
Olhe, cheguei há uma semana aqui e tinha a minha avó toda desesperada por causa de uma notícia que é mentira. Os rumores infundados e as falsas notícias e ligações, provocam não só danos pessoais, mas a outros níveis. Às vezes as pessoas esquecem-se de que há filhos, há família. Cheguei numa quinta-feira. A minha avó pegou na revista e havia uma chamada na capa a dizer que eu tinha sido apanhado pela polícia. Depois, abre-se a revista e a notícia está cheia de contradições. Eu nem sequer estava cá em Portugal. Eu não consigo perceber como é que se pode fabricar uma notícia através de fontes. Umas podem ser credíveis e outras não. Hoje em dia qualquer pessoa pode ser uma fonte. Isto pode pôr em causa questões profissionais, questões não só de imagem mas também profissionais. Não ponho em causa a verdade dos factos de algumas situações que acontecem, mas sempre tive mais fama do que proveito. E se eu fosse manifestar sempre o meu desagrado, significava alimentar determinadas coisas e acabava por dar continuidade aquilo que não é verdade.

A notícia recente a que se refere dizia que foi apanhado a conduzir com álcool?
Como é que podem dizer que me viram no Casino de Lisboa? Fui lá pessoalmente, mostrei o passaporte, os vistos de entrada e de saída e provei por A mais B que era impossível. Pediram-me desculpa e que iam fazer um desmentido, uma rectificação para sair na próxima revista. Mas o impacto foi feito. Essas histórias que inventaram...Se estou num sítio público e se vou falar com uma pessoa, a partir do momento em que estou a falar com essa pessoa com quem tenho uma relação de amizade, se estamos a rir e a conversar, podemos assumir ao tirar umas fotografias que há ali um envolvimento? Sou muito cioso da minha vida privada.

Foi publicada também uma notícia em 2017 de que estaria numa situação de insolvência, que devia um milhão e meio de euros...
...Está a ver. Eu estou bem com a minha vida, estou bem com o meu património não só pessoal e essa situação só teve essa dimensão de notícia por eu ser uma figura pública, mas objectivamente não é realista e está tudo resolvido."

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