"Em 1974, Mwepu Ilunga saiu da sua barreira para chutar uma bola que estava ser preparada para um livre. O momento que então foi visto como amadorismo é agora entendido como exemplo clássico de racismo
O jogo entre Brasil e Zaire (agora República Democrática do Congo), da última jornada da fase de grupos do Mundial 1974 na Alemanha, não parece ter muita história à primeira vista. Foi uma vitória fácil dos campeões em título frente a uma equipa que em duas partidas tinha 11 golos sofridos e zero marcados. Valeu mesmo um certo lance de bola parada para que este jogo não caia no esquecimento. Obra e graça de Mwepu Ilunga.
O defesa direito fazia parte da barreira que os seus colegas estavam a formar para se opôr a um livre a favor do Brasil quando, sem que nada o fizesse prever, decide sair da formação a correr para dar um chuto na bola. Perante a surpresa dos adversários e do próprio árbitro (que lhe deu um amarelo com cara de quem não sabia muito bem o que fazer), o lance visto sem contexto parece algo saído dos apanhados, de alguém que achava que estava a cumprir as regras. Mandar a bola para longe e pronto, livre resolvido. "Um momento bizarro de ignorância africana", como o descreveu então o comentador da BBC, John Motson.
Só que não é bem assim. Primeiro, porque qualquer análise além do estereótipo poderia deduzir que um jogador experiente que fazia parte da equipa vencedora da Taça das Nações Africanas, e com muitos encontros internacionais pelo caminho, saberia as mais elementares regras do jogo. E, segundo, porque se tratou de um ato calculado de protesto, além da caricatura fácil.
O Zaire vivia então sob a liderança de Mobutu Sese Seko, um dos ditadores mais megalómanos e sanguinários que o continente africano viu, o que não será dizer pouco. O seu anti-comunismo valeu-lhe o apoio financeiro dos EUA, que serviu sobretudo para enriquecer os bolsos e pagar projectos de vaidade. Um deles foi a seleção nacional de futebol que beneficiou do seu interesse e foi a primeira equipa da África subsariana a chegar a um Mundial. Os jogadores foram inclusivamente convidados para o palácio do presidente, que ofereceu a cada um Volkswagen e uma casa. Nada mais que um incentivo desinteressado para garantir uma boa performance.
Apesar de não ter seguido com a equipa, Mobutu mandou um gigante séquito para a Alemanha para garantir que tudo corria pelo melhor. No primeiro jogo, a derrota por 2-0 contra a Escócia não reflectiu na totalidade uma boa performance dos africanos, que deu alguma esperança para o jogo seguinte com a Jugoslávia. Só que os gastos sem controlo por parte do regime fizeram com que os jogadores descobrissem que não iam receber pela participação.
Seguiu-se uma ameaça de greve, com rumores de que a própria FIFA terá oferecido dinheiro para que houvesse jogo. Que aconteceu, com os atletas desgastados e desinteressados a saírem vergados a uma humilhante derrota por 9-0.
A equipa terá sido ameaçada por guardas armados para não perder por mais de quatro no jogo seguinte com o Brasil. Caso contrário, não podiam voltar ao seu país. É então que entra em cena Mwepu Ilunga. Ao invés do amadorismo com que o caso foi pintado, o seu sprint foi descrito pelo próprio ao mesmo tempo como um ato de protesto contra a falta de pagamento e como tentativa de desconcentrar os brasileiros. "A maioria dos brasileiros e do público achou que foi algo hilariante, amador. Apeteceu-me amaldiçoá-los a todos, não sabiam a pressão que viviamos."
"Só" perderam por três mas, no regresso, perderam todas as regalias, com a maior parte dos jogadores a viver na miséria o resto das suas vidas. De um estereótipo para a rebelião, a linha é muito fina."
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