"Uma bola de futebol com uma coroa de Cristo e algumas gotas de “sangue”, uma árvore de Natal com fotos do ídolo penduradas como “estrelas”, um terço em cuja ponta aparece uma chuteira em vez de um crucifixo, o nome “Diego ” em substituição de “Amen”, uma infinidade de objectos e rituais seguidos com devoção por milhares de fiéis da chamada Igreja Maradoniana.
Para uma legião de fanáticos, só há uma certeza à face da Terra: Diego Armando Maradona é o Deus Supremo do futebol. Uma loucura? Não é o que pensam mais de 100 mil pessoas espalhadas por todo o mundo.
“Para os argentinos, o futebol é vivido como uma religião. E como cada religião tem o seu Deus, o Deus do futebol é Diego. É lógica pura”, explicou ao Expresso Alejandro Verón, um dos três fundadores da Igreja Maradoniana, a Mão de Deus, em alusão ao famoso golo marcado com a mão contra os ingleses no dia 22 de junho de 1986, ano em que Maradona era considerado o melhor futebolista do mundo.
A Igreja Maradoniana nasceu em 1998, na cidade de Rosario, quando, por brincadeira, o jornalista Hernán Amez começou a festejar o Natal no dia do aniversário de Maradona. Logo a seguir juntaram-se a ele Alejandro Verón e Federico Canepa. “No início eu pensava fazer um clube de fãs. Achava que teríamos problemas com os padres católicos, mas fui voto vencido ”, lembra Verón, concluindo: “Esta é uma homenagem em vida. Neste país, somos muito ingratos. Todos são valorizados depois de mortos. É preciso dizer o que as pessoas são enquanto são vivas, e Diego é o nosso Deus.” Para os seguidores da Igreja Maradoniana, o dia de Natal é a 29 de outubro.
“Diego está na galeria dos mitos da Argentina, na galeria onde estão Ernesto 'Che' Guevara, Evita e Juan Domingo Perón, Carlos Gardel, e Juan Manuel Fangio. Havia, em relação a todos eles, uma devoção quando eram vivos, mas o mito veio com a morte. Maradona é um mito vivo”, acredita Daniel Arcucci, autor do livro “El Diego de la Gente” (“O Diego do Povo”), considerado pela igreja como a Bíblia de Maradona (ver noutro texto os 10 mandamentos da Igreja Maradoniana).
Centenas de pessoas reúnem-se duas vezes por ano para celebrar as duas datas emblemáticas para a Igreja: o dia de Páscoa, a 22 de junho, e o de Natal, a 29 de outubro. Durante a comunhão espiritual, o público explode em cantigas. A mais repetida é a preferida de Diego Maradona: “Voltaremos, voltaremos. Voltaremos outra vez. Voltaremos a ser campeões, como em 86.”
De repente, a procissão irrompe no salão. Apóstolos com batinas brancas carregam os símbolos daquele que é considerado por aqui o maior jogador de futebol de todos os tempos. No centro do cortejo, um presépio apócrifo em forma de igreja com uma réplica em miniatura da estátua de homenagem a Maradona na cidade argentina de Mar del Plata. São 10 os apóstolos. O décimo primeiro seria Maradona, para completar a equipa.
Não há décimo segundo. “Não existe Judas nesta religião do futebol. Nem tudo tem paralelo com o catolicismo. As coisas surgem, simplesmente. É o folclore do futebol”, conta Verón.
O ritmo do cortejo é marcado com uma oração liderada pelos fundadores da Igreja. “Em nome de Dona Totaaaaaaa. de Dom Diegoooo (pais de Maradona). e fruto desse amoooor”, pronunciam.
“Diegooooooo.Diegoooo”, responde o público, em tom de amen. “Dieeeegooooooooo queridooooooooo, obrigado pela tua magia eternaaaaaaaaaa”, avança a liturgia.
Os olhares são de admiração e de respeito. Não há espaço para brincadeiras. “Este é um movimento num tom muito sério, por mais que alguns o queiram definir como uma paródia. Isto nasceu verdadeiramente do amor a um ídolo, num momento em que Maradona não estava bem. Em países como a Argentina, o futebol é um fenómeno inexplicável. É sanguíneo. Aqui não se permite nem uma derrota, porque o povo fica inabilitado para ser feliz por, pelo menos, uma semana”, interpreta o diretor técnico de futebol José Caldeira, autor do livro “Igreja Maradoniana, a Mão de Deus”, que ele define como “um movimento único no mundo que transformou um jogador de futebol numa religião”.
Esses mesmos fiéis reuniam-se em anos anteriores para celebrar o Natal Maradoniano e para rezar em cadeia pela saúde daquele que consideram Deus na Terra, internado várias vezes por problemas cardíacos e pulmonares, como consequência do consumo de cocaína e álcool, que o colocaram em risco de vida.
“No terreno do futebol, ele foi e continuará a ser um exemplo. Na sua vida privada, não. Na vida desportiva, estamos com Diego até a morte. Na sua vida privada, cada um é responsável pelos seus atos. Nem tudo o que ele faz está bem. Temos consciência disso”, concorda Alejandro Verón.
Mas salienta: “Quando Diego estava mal numa cama e quando todos esperavam que ele morresse, não era fácil ser maradoniano. Nós enfrentamos as balas com o próprio peito. Aguentamos tudo. Fomos fortes. Agora queremos desfrutar.” “Como qualquer fenómeno desse tipo, não há uma explicação racional. Nesta altura, a glória do futebol, os grandes feitos da carreira são quase uma desculpa para justificar a idolatria. Isso cresceu até sair do campo de jogo.
Diego representa a fantasia dos argentinos sobre essa atitude de rebelar-se contra quase todos e vencer. O exagero também faz o mito”, analisa Daniel Arcucci, o jornalista que mais bem conhece Maradona, segundo o próprio ídolo.
Dezenas de noivos casaram-se pela Igreja Maradoniana. Mas o ritual mais repetido é o do baptizado. A cerimónia consiste em reproduzir o golo que Maradona marcou com a mão contra a Inglaterra em 1986. O fiel salta, com o braço esquerdo levantado, diante de uma imagem gigante do guarda-redes inglês Peter Shilton, para imitar o famoso e polémico golo que, posteriormente, o próprio Maradona justificaria dizendo que foi como “a mão de Deus”.
Cada fiel recebe um certificado atestando a sua nova condição de membro da Igreja Maradoniana.
São já mais de 100 mil, em 54 países, entre os quais locais tão improváveis como o Suriname, o Vietname e o Uganda. Entre os membros há figuras ilustres como Ronaldinho, Deco, Careca, Messi e até os ingleses Gary Lineker e Michael Owen. Ou o ex-seleccionador brasileiro Dunga. No Brasil, a Igreja tem mais de dois mil membros.
Para a Igreja, não existe Satanás, embora numa certa altura tenham pensado em Pelé. “Não, não. Pelé é o rei do futebol. Até esse ponto ele chegou. Mas Diego é Deus: está acima”, compara Verón.
“Mas temos hereges: Havelange (o brasileiro João Havelange, que foi presidente da Federação Internacional de Futebol-FIFA durante muitos anos) e Josep Blatter”, completa.
Quando chega a meia-noite, os fiéis repetem um coro: “Feliz Natal! Seremos campeões outra vez, como em 86.” A sala volta a tremer. Maradona está ao telefone: “Obrigado por tanto carinho. Isso que vocês cantam é o sonho que eu tenho. Agradeço-lhes com a alma. Deus estará connosco, como em 86. Tenham fé em Deus... (“Deus é você! ”, gritam ao fundo)... digo, no Deus verdadeiro, e tudo vai dar certo”, respondeu Diego. Pelos rostos de muitos dos presentes corriam lágrimas.
Vários fiéis da Igreja Maradoniana acreditam em milagres. É o caso de Nicolás Vallina, cuja mulher não conseguia engravidar. Depois de uma visita de Nicolás ao Hospital de Crianças, para distribuir brinquedos em nome da Igreja Maradoniana, ela engravidou. Nicolás só tinha ido ao hospital devido à insistência dos fundadores da Igreja, que lhe diziam que o Deus do futebol o iria ajudar a tornar-se pai. “Foi um milagre do Deus do coração, do Deus do futebol”, acredita Nicolás.
Contudo, os fundadores da Igreja não querem ouvir falar em milagres. “Já ouvi algumas histórias, mas não queremos incentivar essas coisas. Muita gente pedia que ele se curasse quando estava mal. Diziam que, se melhorasse, seria milagroso. Pediram trabalho, e até o conseguiram. Sinceramente, não vejo isso como um milagre - e desvirtua a nossa ideia original ”, diz Alejandro Verón.
Seja como for, a devoção não tem limite. Lionel Gorosito, da cidade de Rosário, foi avisado pelo chefe de que seria despedido se se fosse embora para Buenos Aires (a 310 km de distância) para ir apoiar Maradona à porta da clínica onde ele estava internado na altura. Perdeu o emprego, mas não se arrepende.
Uma devoção semelhante é a de Pablo Lescano, que aparece na abertura do filme “Amando Maradona”. Pablo tem o rosto do seu “Deus” tatuado no peito. Nos momentos críticos em que Maradona corria risco de vida, Pablo viajava durante duas horas e meia todos os dias, ficando à porta da clínica até às quatro da manhã. Dormia apenas uma hora, antes de ir trabalhar.
“Eu amo mais o Diego do que a minha própria família. Nem por um parente eu faço isso. A minha avó está doente e eu não a vou ver”, admite. Daniel Astilleta, outro fiel da Igreja, mostra, orgulhoso, a filha Bianca, de apenas um mês. Bianca nem sabe, mas acaba de ser batizada na Igreja Maradoniana. “Na intimidade, chorei por ele. Sofri muito quando ele estava doente. Quando recuperou, chorei de emoção”, desabafa.
“Que a minha mulher não me ouça, mas eu gosto mais do Diego do que dela. É mais forte o que sinto por ele. Eu morro por ele. Calculei que a minha filha nasceria perto do Natal e decidi batizá-la primeiro na Igreja Maradoniana.”
Outro crente, Lionel Díaz, sabe tanto de Maradona que ganhou um concurso num programa de TV da ESPN no qual foi submetido a todo o tipo de perguntas sobre Maradona. A final do concurso era uma disputa contra o próprio Maradona, para ver quem sabia mais sobre a vida do ex-jogador. Lionel respondeu mais rápido que o seu próprio “Deus” - e ganhou.
O casal de namorados Fabián da Silva e Elizabeth Galvani observa todo o folclore em torno do futebol com um brilho nos olhos. No meio de tantas canções de louvor a Maradona, pouco mais podem fazer - ambos são surdos.
“Diego é um exemplo para nós. A mensagem que ele nos transmite é a de que, apesar de tudo, é possível uma solução. Ele entrega-se com muita força, sem se importar com o que dizem os outros”, escreve Elizabeth. No dia 22 de junho de 1986, quando Maradona eliminou a Inglaterra com dois golos históricos, Fabián fazia três anos. “A minha casa era pura alegria. Foi o melhor presente da minha vida. Isso marcou-me para sempre”, conta.
Todos os membros da Igreja têm como segundo nome Diego - um dos mandamentos da Igreja. Uma coisa é o registo civil, com o nome de batismo, outra é o registo da Igreja. “O meu nome é Alejandro Fabián Verón, mas na Igreja sou Alejandro Diego. No caso do filho, é diferente. Muitos põem mesmo Diego como primeiro nome do filho. O meu chama-se Matias Diego”, explica Alejandro, um dos fundadores da Igreja.
Pablo Miño respeita o mandamento. O filho, com três anos, chama-se Diego Sebastián Miño - e por pouco não se chamou Diego Armando. “Ele nasceu num 3 de outubro, durante o programa de Maradona na TV”, conta Pablo orgulhoso, referindo-se ao programa “La Noche del 10”. Há mesmo o caso de um pai que arranjou forma de colocar Maradona no nome da filha: Ángeles Mara Donna Marchi."