"Sochi - Há oito anos, no Mundial da África do Sul, eu e o exorbitante Carlos Mateus dávamos à taramela numa rua de Durban quando um brasileiro passou por nós aos gritos agarrado a um telemóvel: “Cara, tou no Durban. Issaí é iguauzinho a Nordesti. Tem coqueiro e mangue e tudo. Iguauzinho.”
Ora bem, ninguém negará que os brasileiros têm muitos dos defeitos e das virtudes dos portugueses, embora aquecidos pelo calor dos trópicos, e as capacidades dilatatórias do calor são indiscutíveis. Esta de andar pelo mundo a comparar tudo e mais alguma coisa com o que se tem em casa é matéria comum. Ainda há dois dias, uns portugueses que jantavam no mesmo restaurante que eu pediram palmenis e refilaram: “Ora, é canja...” Outros olharão de soslaio para a pirâmide de Keops e desdenharão: “Em Aveiro temos umas do género mas em sal...”
Vem a história das comparações a propósito de um episódio passado com o escritor alemão Arnold Zweig, e isto porque a Alemanha está na ordem do dia por ter sido posta, como dizer?, na ordem. Em 1927, Zweig assistiu a um comício de Hitler e, impressionado, escreveu para a mulher: “Parece o Charlot!” Curiosamente, em 1940, seria Charlot a parecer Hitler em “O Grande Ditador”. Já não sei quem foi que sentenciou uma vez: “A gente distrai-se colectivamente e, zás!, o fascismo!”
Não foi por uma distracção colectiva que Hitler chegou ao poder, mas a verdade é que o mundo foi apanhado com as calças na mão e, num instante, já as hordas nazis estavam às portas de Moscovo. Bertolt Brecht, que dedicou a Adolf um ódio muito especial e requintado, nesse ano de 1927 já tinha escrito, com o seu parceiro Kurt Weill, uma ópera chamada “Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny” (“A Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny”), na qual dava palco às brutalidades emergentes. Não se pode desmentir que tinha uma razão absoluta: “Perguntei a mim mesmo: que tipo de frieza/ Tomou conta desses desgraçados?/ Quem os levou à torpeza?/ Quem os fez baixar o nível?/ Vocês precisam de os ajudar rapidamente, coitados./ Se não, vai acontecer algo que pensariam impossível...”
Aconteceu.
Hitler levou a Alemanha à torpeza.
Mas Brecht, condenado ao exílio na Suécia e nos Estados Unidos, nunca perdeu o veneno do humor. Num poema chamado “Comboio de Serviço” dedica-se a descrever um comboio de luxo mandado fazer expressamente para levar o Führer ao congresso do partido em Nuremberga. “Pelas largas janelas veem os camponeses alemães mourejar os campos./ Se por acaso transpirassem nesse momento poderiam tomar banho em cabines cobertas de ladrilhos”.
A maravilha da indústria ferroviária alemã atingia o cúmulo da perfeição: “Sem sair da cama, os passageiros também podem ligar o rádio, que transmite as grandes reportagens sobre os erros do regime./ Jantam, se assim o desejarem, no respectivo apartamento, e fazem as respectivas necessidades em privados revestidos de mármore./ Cagam na Alemanha.”
Vendo bem, é mais ou menos isso que, neste momento, acontece por aqui, em Sochi, entre adeptos e jornalistas e simples passeantes. Há países que são assim, como as pessoas: suscitam respeito, mas nunca simpatia. Os erros de cada um prolongam-se pela sua vida e vão tendo, aqui e ali, réplicas como os terramotos.
A selecção do Brasil está instalada a uns 50 quilómetros de distância da cidade e a moçada de camisola amarela espalha-se pelas ruas com a alacridade tão própria de quem aproveita qualquer musiquinha para tocar pandeireta numa caixa de fósforos. Os 7-1 de 2014 como que foram vingados por mexicanos e coreanos até à beira do achincalho. Ou do esculhambanço, se preferirem um termo mais tropical. Coisa que Brecht sempre tentou fazer a Adolf Hitler. E, por isso, quando lhe pediram uma opinião sobre o figurão, resumiu: “Um bigode tão pequeno num focinho tão imenso!”"
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