"A notícia chegou-me numa breve. Morreu Tommy Lawrence.
Como assim, morreu? Ainda era vivo? Como pode um homem deste tamanho passar despercebido? Como pode, meu Deus, ser só uma breve?
Tommy Lawrence foi guarda-redes do Liverpool durante catorze anos e deixou para a eternidade alguns dos melhores pedaços da história deste jogo que nos apaixona.
Nascido na Escócia, mudou-se muito novo para Inglaterra e trabalhava numa fábrica de fios quando foi contratado pelo Liverpool, com 16 anos. Estreou-se pela equipa principal uma época depois pelas mãos do mítico Bill Shankly: o treinador que levou o clube ao topo do futebol inglês.
Foi mais ou menos nessa altura que foi chamado para ser titular frente ao Arsenal.
O Liverpool ganhava por 1-0 quando a poucos minutos do fim Joe Baker rematou a trinta metros da baliza, Tommy Lawrence abordou mal a bola e esta fugiu-lhe pelo meio das pernas.
Dizem que os cincos minutos finais foram um massacre por parte do Arsenal, à procura da vitória.
Quando o árbitro apitou para o fim, Tommy Lawrence correu tão rápido quanto podia para o balneário, para se meter debaixo de um chuveiro e não ouvir os gritos de Bill Shankly. Infelizmente para ele, houve mais dez jogadores que pensaram o mesmo: por isso quando entrou no balneário os chuveiros já estavam todos ocupados. Tommy sentou-se num canto à espera.
«Onde é que ele está?», gritou Shankly, vermelho de raiva. Tommy levantou-se. «Estou aqui, chefe, mas antes de começar a falar deixe-me dizer que peço imensa desculpa: nunca devia ter aberto as pernas para aquela bola.»
Bill Shankly parou de gritar e pareceu ficar mais calmo. «A culpa não é tua, filho», disse. «A tua mãe é que nunca devia ter aberto as pernas.»
A história, contada por um colega de Tommy Lawrence, tornou-se lendária em Inglaterra.
Mas não foi a única.
Tommy foi quase sempre o guarda-redes de Shankly: apesar de muito novo, era o preferido dele. Jogou 390 vezes pelo Liverpool, ganhou uma Taça de Inglaterra e dois campeonatos.
Um dia o adjunto Bob Paisley entrou no balneário e disse para Tommy: «O chefe quer falar contigo.»
Tommy Lawrence tremia de medo de Bill Shankly, como quase todos os jogadores. Dirigiu-se ao gabinete do treinador e recebeu uma notícia que iria revolucionar o futebol.
«Filho, a partir de agora, quando estivermos em situação de ataque, quero que saias da baliza e te posiciones na linha da grande área. Vais ser o nosso primeiro defesa. Quando o adversário lançar a bola para o ataque, tu chuta-la com força para o outro meio-campo.»
Quis o destino que o primeiro jogo para fazer a experiência nesta ideia fosse em Anfield Road. «Passei o jogo todo a ouvir trinta mil pessoas gritar Lawrence, o que é que tu estás a fazer? Estás maluco? Volta para a baliza!», contou Tommy Lawrence.
«Mas aquela ideia correu bem. Quando chegava primeiro à bola, devolvia-a para o ataque, quando não chegava primeiro, derrubava o jogador porque na altura não havia expulsões.»
A partir daí fez-se escola: era impensável não ter um guarda-redes que entrasse no jogo da equipa.
Tommy Lawrence terminou a carreira aos 34 anos e voltou para a fábrica de fios onde trabalhava antes de ser contratado pelo Liverpool.
Há uns anos, de resto, a BBC realizava uma reportagem de rua junto de adeptos anónimos, na antevisão do Liverpool-Everton, quando o jornalista perguntou a um senhor que passava se se lembrava do mítico dérbi de Merseyside de 66-67.
«Lembro-me perfeitamente. Eu joguei-o. Era o guarda-redes do Liverpool», responde Tommy Lawrence, de sorriso nos lábios.
O vídeo tornou-se viral: foi visto mais de dois milhões de vezes.
Tommy Lawrence tinha 77 anos, morreu nesta terça-feira e com ele morreu mais um pedaço daquele futebol antigo: o futebol de coração bom e cabeça fresca.
O futebol que não se vê, sente-se. Na bancada, ao domingo à tarde e com o estádio cheio de adeptos. Com a paixão a bater no peito e o suor a correr na ponta dos dedos.
Com Tommy Lawrence morreu - como morre sempre que uma antiga estrela nos deixa - aquele futebol que começa do zero, que nós enchemos de mimo, que tratamos com carinho, que amamos apaixonadamente. O futebol que nos enche de memórias felizes, anteriores às câmaras de televisão, aos adeptos de sofá, aos estádios cheios de turistas, de selfies e de lives para o facebook.
Morreu, enfim, um pouco de tudo aquilo que nos fez apaixonar por este jogo."
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