"Shakespeare teria gostado dele. Vítor Baptista era feito do mesmo barro com que fazem os heróis trágicos, como Jim Morrison ou George Best.
Tinha um talento especial para transformar permanentemente a vida em teatro. Escancarava com insistência as portas e as janelas proibidas, descobrindo ventos e tempestades inimagináveis. Era um ser desabridamente humano, com tanto de vilão como de criança ingénua e desconcertante. Não procurava deliberadamente os holofotes, mas a sua personalidade excêntrica fazia com que os holofotes o procurassem.
Nascido e criado no seio de Setúbal, abraçou o Vitória, onde cresceu como jogador e encetou o caminho das suas vivências mirabolantes.
Aos 18 anos, venceu a Taça de Portugal ao serviço dos sadinos. Inicialmente com funções de médio, seria o técnico José Maria Pedroto a traçar-lhe o destino de finalizador. 'Força, talento, visão e remate', assim o resumiu, um dia, Amadeu José Freitas. Como goleador, viveria o auge em 1971, seu ano derradeiro no Bonfim, antes de voos mais altos. Falhou, então, por uma unha negra a Bola de Prata, com o benfiquista Artur Jorge a toldar-lhe o sonho no último jogo do campeonato.
E veio o Benfica, onde imperavam os treinos árduos de Jimmy Hagan. De águia ao peito, sagrar-se-ia cinco vezes campeão nacional em apenas sete épocas. Pelo meio, seria um autêntico cavalo selvagem, que nunca o clube nem a selecção ou a sociedade conseguiriam domar.
Em 1978, marcou um golo que foi um brinco, resolvendo, na Luz, o jogo com o Sporting a contar para o Nacional'. Quando os companheiros o abraçaram, saltou-lhe da orelha o polémico e arrojado talismã de brilhantes que lhe tinha custado os olhos da cara. O jogo parou, e, enquanto o público, mal refeito da festa, procurava desvendar o que fazia o jogador de rabo para o ar, revolvendo a relva, Vítor Manuel Ferreira Baptista, o homem, semeava a estória mais caricata do futebol português. 'Perco dinheiro a trabalhar', diria. Era o canto do cisne. No rescaldo da cena, em atitude reincidente, declarou-se mal pago, recusando-se a alinhar, dias depois, frente ao Liverpool. Que tinha dores de cabeça. O despedimento com justa causa foi santo remédio.
Regressou a Setúbal, numa passagem fugaz com passaporte para o Porto, onde o acolheu o Boavista. Aí, treinava quando queria, 'que era o Vítor Baptista'.
Talvez inspirado por Burt Lancaster, que certo dia o fez chorar no filme Trapézio, nunca parou com os saltos mortais. Sairia do Bessa para o San José Earthquakes, dos Estados Unidos, onde não aqueceu o lugar. Regressado à pátria, seguiram-se Amora, Montijo, União Tomar, Monte Caparica e, finalmente Estrelas do Faralhão, da II Divisão Distrital, de Setúbal. Aí chegou em meados de 80, veterano já, depois de ter passado o último Natal com a namorada numa barraca tapada com jornais.
Eram já os pântanos da droga e da delinquência com a justiça à perna. Chegava aos tribunais a saía. Era «um homem bom e generoso, desviado pela sua própria imaturidade e por circunstâncias várias da sua vida em particular». Mas esse desvio reiterado levá-lo-ia ao cárcere. Depois de sair, conseguiu empregar-se na Câmara de Setúbal como jardineiro. Voltas para aqui, voltas para acolá, e acinzentou-se a sua relação com as flores, assumindo o ofício de coveiro. Caminhava já para o dia 1 de Janeiro de 1999, a partir do qual as portas e as janelas proibidas descansaram finalmente em paz. Tinha 50 anos. Por muitos ventos e tempestades que envolvam o seu nome, Vítor Baptista será sempre 'o Maior', como ele próprio, um dia, do alto da sua célebre inspiração, se auto-proclamou. Glosando um dito do também indomável Maradona, no dia da sua despedida: 'Yo me equivoqué y pagué, pero la pelota no se mancha.' "
Luís Lapão, in Mística
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