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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O cavalo selvagem

"Shakespeare teria gostado dele. Vítor Baptista era feito do mesmo barro com que fazem os heróis trágicos, como Jim Morrison ou George Best.
Tinha um talento especial para transformar permanentemente a vida em teatro. Escancarava com insistência as portas e as janelas proibidas, descobrindo ventos e tempestades inimagináveis. Era um ser desabridamente humano, com tanto de vilão como de criança ingénua e desconcertante. Não procurava deliberadamente os holofotes, mas a sua personalidade excêntrica fazia com que os holofotes o procurassem.
Nascido e criado no seio de Setúbal, abraçou o Vitória, onde cresceu como jogador e encetou o caminho das suas vivências mirabolantes.
Aos 18 anos, venceu a Taça de Portugal ao serviço dos sadinos. Inicialmente com funções de médio, seria o técnico José Maria Pedroto a traçar-lhe o destino de finalizador. 'Força, talento, visão e remate', assim o resumiu, um dia, Amadeu José Freitas. Como goleador, viveria o auge em 1971, seu ano derradeiro no Bonfim, antes de voos mais altos. Falhou, então, por uma unha negra a Bola de Prata, com o benfiquista Artur Jorge a toldar-lhe o sonho no último jogo do campeonato.
E veio o Benfica, onde imperavam os treinos árduos de Jimmy Hagan. De águia ao peito, sagrar-se-ia cinco vezes campeão nacional em apenas sete épocas. Pelo meio, seria um autêntico cavalo selvagem, que nunca o clube nem a selecção ou a sociedade conseguiriam domar.
Em 1978, marcou um golo que foi um brinco, resolvendo, na Luz, o jogo com o Sporting a contar para o Nacional'. Quando os companheiros o abraçaram, saltou-lhe da orelha o polémico e arrojado talismã de brilhantes que lhe tinha custado os olhos da cara. O jogo parou, e, enquanto o público, mal refeito da festa, procurava desvendar o que fazia o jogador de rabo para o ar, revolvendo a relva, Vítor Manuel Ferreira Baptista, o homem, semeava a estória mais caricata do futebol português. 'Perco dinheiro a trabalhar', diria. Era o canto do cisne. No rescaldo da cena, em atitude reincidente, declarou-se mal pago, recusando-se a alinhar, dias depois, frente ao Liverpool. Que tinha dores de cabeça. O despedimento com justa causa foi santo remédio.
Regressou a Setúbal, numa passagem fugaz com passaporte para o Porto, onde o acolheu o Boavista. Aí, treinava quando queria, 'que era o Vítor Baptista'.
Talvez inspirado por Burt Lancaster, que certo dia o fez chorar no filme Trapézio, nunca parou com os saltos mortais. Sairia do Bessa para o San José Earthquakes, dos Estados Unidos, onde não aqueceu o lugar. Regressado à pátria, seguiram-se Amora, Montijo, União Tomar, Monte Caparica e, finalmente Estrelas do Faralhão, da II Divisão Distrital, de Setúbal. Aí chegou em meados de 80, veterano já, depois de ter passado o último Natal com a namorada numa barraca tapada com jornais.
Eram já os pântanos da droga e da delinquência com a justiça à perna. Chegava aos tribunais a saía. Era «um homem bom e generoso, desviado pela sua própria imaturidade e por circunstâncias várias da sua vida em particular». Mas esse desvio reiterado levá-lo-ia ao cárcere. Depois de sair, conseguiu empregar-se na Câmara de Setúbal como jardineiro. Voltas para aqui, voltas para acolá, e acinzentou-se a sua relação com as flores, assumindo o ofício de coveiro. Caminhava já para o dia 1 de Janeiro de 1999, a partir do qual as portas e as janelas proibidas descansaram finalmente em paz. Tinha 50 anos. Por muitos ventos e tempestades que envolvam o seu nome, Vítor Baptista será sempre 'o Maior', como ele próprio, um dia, do alto da sua célebre inspiração, se auto-proclamou. Glosando um dito do também indomável Maradona, no dia da sua despedida: 'Yo me equivoqué y pagué, pero la pelota no se mancha.' "

Luís Lapão, in Mística

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