"O Antigo Craque Encarnado Faleceu Aos 63 Anos De Idade
Atormentado nos últimos dias pelo inferno da doença, Fernando Chalana diz adeus definitivamente ao mundo que sempre o viu como expropriador dos sofrimentos mundanos, o entertainer por excelência e o ídolo que inspira toda uma geração de miúdos – que infelizmente não foi a minha, e por isso nunca poderei com rectidão transmitir a totalidade do que foi Chalana.
Mas há um outro lado, que ao mesmo tempo o torna tão próximo como inantingível: a tradição oral permite-nos imaginar a preponderância do seu futebol no imaginário colectivo, além do caos da sua vida pessoal sempre atribulada, factos que se desvaneceram com o tempo e se tornam, agora, como tarefa de Sísifo – quanta mais informação se procura, parece que mais se esconde…
A força dos números ajuda desde logo a perceber a sua importância como símbolo benfiquista pós-Eusébio. O contexto da sua criação é guião hollywoodesco, o humilde que se torna grande por meio das acções intuitivas, nunca premeditadas – e que mesmo grande se mantém simples figura, pouco apto e pouco interessado na permanente exposição mediática.
Essa simplicidade, que o tempo só ajudou a destacar, foi o que fez dele sempre figura grata nas bancadas da Luz, que o ajudou a manter uma imagem positiva no seio da massa adepta, do real povo benfiquista. Apesar de todos os escândalos com Anabela, das lesões, das expressões disparatadas gritadas para a imprensa.
Aos 14 anos, presta provas na CUF – que já era altura devida, depois de ser o rei de todas as peladinhas dos descampados. Foi recusado, que a equipa de futebol da empresa era um antro de cunhas: passou a rua, foi ao Barreirense treinar e ficou.
Juca, grande figura sportinguista e treinador campeão mais novo de sempre até Villas Boas, puxa-o para os séniores e dá-lhe imediatamente minutos – o impacto foi tal que demorou… seis jogos até o Benfica dar 750 contos pela carta de desobrigação.
O clube vendedor fechou-se em copas, bem caladinho, e só comunicou a jogador e progenitor quando o dinheiro já estava bem guardado nos cofres. Chalana pai, resoluto, exigiu outro tratamento. Os responsáveis, condescendentemente, estenderam a mão com… 20 contos.
«Foi deplorável o que fizeram no Barreirense. Negociaram o meu filho sem que eu e a mãe soubéssemos. Um dia, apareceu cá em casa um senhor que vinha buscar o Fernando para o Benfica, pois já se tinha efectuado a transferência. Ia ganhar quatro contos por mês! Mais tarde vim a saber que os directores do Barreirense haviam recebido cerca de 750 contos e então quis saber como era.
Perante a nossa mágoa, o Benfica deu-nos 25 contos. Foi, então, que os senhores do Barreirense quiseram dar-nos 20 contos, depois de abusivamente receberem 750! Como homem honesto e trabalhador, não ia vender-me por 20 contos e não aceitei coisa alguma. Não precisava de esmolas. Ainda tinha braços para trabalhar e para que nada faltasse ao meu filho.»
Estreou-se em Março de 1976, com 17 anos e 25 dias (um recorde ultrapassado por… Marco Caneira, em 1996, que se estreou no dia do aniversário). Substitui Toni ao intervalo e entusiasma desde logo a massa adepta. Mário Wilson deu-lhe o baptismo, Mortimore apoiou-se no seu talento para ir buscar, num sprint épico, o campeonato á cova dos leões, que começaram bem e acabaram a nove pontos (quando a vitória valia 2…).
Estávamos em 1976-77. Até 1984 construiu uma lenda e tornou-se figura de culto no futebol português, quer fosse pelo que fazia no Benfica quer pela Selecção.
A completa explosão internacional no Euro 84 abre-lhe as portas da Ligue 1 e do Bordéus, a equipa que emprestava á França campeã europeia um sem número de craques – Giresse, Tigana, Tusseau ou Lacombe. Chalana seria a estrela da companhia no assalto ao êxito.
Mesmo a um nível aquém do que poderia fazer e que nunca atingiu desde aí, Chalana levou os Girondinos ás meias-finais da Taça dos Clubes Campeões Europeus (onde perderam 3-2 no agregado contra a Juventus de Platini): nessa caminhada há o desempate por penalties com o Dnipro, um daqueles momentos que traçam os limites entre bons jogadores e os verdadeiros artistas da bola. Chalana, apesar de quase sempre confrontado com muitas e exaustivas contrariedades, era homem que se diferenciava nos momentos de maior pressão.
20 Mar 1985
— Rui Miguel Tovar (@ruimtovar) August 10, 2022
Dniepr 1:1 Bordéus
❗️Penálti decisivo rumo à ½ final da Taça dos Campeões e Chalana marca o 5:3 com o pé direito. Aimé Jacquet, seu treinador no Bordéus, diverte-se: 'Os génios são assim, nunca pensei que ele fosse marcar com o pé direito'https://t.co/q0qIAmsIT1
Aimé Jacquet era o seu treinador, o mesmo general dos Le Bleus campeões mundiais de 1998 – famosa ficou a sua insistência em Guivarc’h, em detrimento de Henry ou Trezeguet – e talvez por aí se explique um pouco do insucesso de Fernando em terras gaulesas.
Isso, a inveja de alguns colegas, as lesões, o circo mediático que Anabela – sua esposa – nunca teve lucidez ou boa vontade para controlar e as consequentes saudades de casa provocaram o regresso á Luz, derrotado, em 1987. Reestreou-se em Outubro desse ano, depois dum período de recuperação física e anímica.
Diz quem viu que a Luz veio abaixo, puro extâse – depois de muito se assobiar Pacheco, ainda menino, que sem ter culpa nenhuma acabou por se tornar um estorvo ao ser titular naquele dia.
Mas não era o mesmo Chalana. O atleta que até 1984 parecia sobrenatural era agora apenas bom jogador – impensável avaliação para quem o tinha visto no auge e admirado o seu génio quando nenhuma bola do mundo era incontrolável para aquele meio palmo de gente. Continuavam a surgir momentos que outros nunca imaginariam sequer executar, mas de forma muito menos frequente.
Sven Goran Eriksson volta em 1989 com a missão de devolver o Benfica á Taça dos Campeões Europeus. Conseguiu-o, levando a equipa á final de Viena em 90, mas foi ele quem teve a coragem de afirmar que Chalana não era mais insubstituível. Se Toni no ano anterior tentara tudo para recuperar o craque amigo, foi Sven quem transmitiu: não dava mais para atleta de alto nível.
Rotação, talvez. Nessa época de 1989-90, 27 jogos. 12 a titular, 15 como suplente utilizado. Precipitou-se o fim, talvez de maneira demasiado abrupta. Chalana guardou rancor, claro está. «Pior do que as lesões que sofri, foi ter encontrado Eriksson no Benfica, ele sim é que me deu a machadada final. O sueco talvez tenha sido a maior lesão da minha vida!» vociferou á A Bola na altura. Final triste.
Passaria por Belenenses e Estrela da Amadora. Em 1992 era jogador livre e pronto a retirar-se. Em 1994, na miséria depois de um rol de más escolhas, é ajudado pelo Benfica, que o faz entrar pela porta das camadas jovens e dá-lhe cargos como treinador de formação.
Em 1999 é campeão nacional de Juniores, em 2002 estava na equipa técnica de Jesualdo Ferreira quando este é despedido depois de ser eliminado pelo Gondomar (II divisão B) da Taça de Portugal, em plena Luz. Chalana assume o jogo seguinte, é ele quem reinventa Miguel – que de extremo inconsequente passou a um dos melhores laterais da Europa – e acolhe Camacho para a recuperação do Benfica moderno.
Como quase durante toda a vida, foi sempre Chalana dos primeiros prontos a servir o Benfica, nas piores circunstâncias possíveis, sem medo de repercussões na sua imagem. Pura dedicação e a simplicidade dum homem heróico. Pega na equipa em 2007-08 depois de, ironicamente, Camacho sair. É ele quem aguenta o barco naquele final de época penoso, com a derrota por 5-3 em Alvalade pelo meio. Quando todos se afastaram, foi Chalana quem deu a cara.
Agastado com a ingratidão mas de consciência tranquila, voltou ás camadas jovens para inspirar jogadores e treinadores. Rui Vitória, Bruno Lage e Renato Paiva foram os mais contundentes nas demonstrações públicas de carinho para com a lenda – de forma consistente. Era Bruno Lage que estava no banco quando, na comemoração do aniversário de Chalana a 10 de Fevereiro de 2019, ordenou a equipa a impôr-se com um 10-0, exigindo que o último golo fosse do 10 Jonas.
Um daqueles fenómenos numerológicos que se repetiu a 10 de Agosto de 2022, quando Fernando se despediu de nós. Outro detalhe: Jordão, seu grande amigo dentro de fora dos relvados – fizeram formação juntos no Benfica -, nascera a 9 de Agosto.
E talvez sejamos obrigados a não ser insensíveis em relação ao destino e notar a tristeza com que Bernardo Silva se despediu do velho mestre, crucial na sua ascensão enquanto futebolista e o único que, a determinada altura, viu no médio as qualidades que por hoje o tornam num dos melhores do planeta.
«Quando tinha 16 anos, numa fase difícil, fez-me acreditar quando nem eu acreditava. Nos estágios, batia à porta do meu quarto para me dizer que eu ia ser um grande jogador e ia ter muito sucesso»
Chalana chamava-lhe Messizinho e via nele o único á sua semelhança, o único que se entregava completamente á arte da técnica e do raciocínio para ultrapassar as debilidades físicas. O SL Benfica já informou que retira a camisola ‘10’ pelo menos durante 2022-23.
Fica uma sugestão a aproveitar a deixa deliciosa do tal destino: a ‘10’ só poderá voltar a ser utilizada se estiver nas costas de Bernardo Silva. Haverá homenagem que mais faça sorrir o Pequeno Genial, lá do alto do Quarto Anel?"
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