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sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Adeus, Chalana | Génios como tu são entidades transgeracionais


"O Antigo Craque Encarnado Faleceu Aos 63 Anos De Idade

Atormentado nos últimos dias pelo inferno da doença, Fernando Chalana diz adeus definitivamente ao mundo que sempre o viu como expropriador dos sofrimentos mundanos, o entertainer por excelência e o ídolo que inspira toda uma geração de miúdos – que infelizmente não foi a minha, e por isso nunca poderei com rectidão transmitir a totalidade do que foi Chalana.
Mas há um outro lado, que ao mesmo tempo o torna tão próximo como inantingível: a tradição oral permite-nos imaginar a preponderância do seu futebol no imaginário colectivo, além do caos da sua vida pessoal sempre atribulada, factos que se desvaneceram com o tempo e se tornam, agora, como tarefa de Sísifo – quanta mais informação se procura, parece que mais se esconde…
A força dos números ajuda desde logo a perceber a sua importância como símbolo benfiquista pós-Eusébio. O contexto da sua criação é guião hollywoodesco, o humilde que se torna grande por meio das acções intuitivas, nunca premeditadas – e que mesmo grande se mantém simples figura, pouco apto e pouco interessado na permanente exposição mediática.
Essa simplicidade, que o tempo só ajudou a destacar, foi o que fez dele sempre figura grata nas bancadas da Luz, que o ajudou a manter uma imagem positiva no seio da massa adepta, do real povo benfiquista. Apesar de todos os escândalos com Anabela, das lesões, das expressões disparatadas gritadas para a imprensa.


Aos 14 anos, presta provas na CUF – que já era altura devida, depois de ser o rei de todas as peladinhas dos descampados. Foi recusado, que a equipa de futebol da empresa era um antro de cunhas: passou a rua, foi ao Barreirense treinar e ficou.
Juca, grande figura sportinguista e treinador campeão mais novo de sempre até Villas Boas, puxa-o para os séniores e dá-lhe imediatamente minutos – o impacto foi tal que demorou… seis jogos até o Benfica dar 750 contos pela carta de desobrigação.
O clube vendedor fechou-se em copas, bem caladinho, e só comunicou a jogador e progenitor quando o dinheiro já estava bem guardado nos cofres. Chalana pai, resoluto, exigiu outro tratamento. Os responsáveis, condescendentemente, estenderam a mão com… 20 contos.
«Foi deplorável o que fizeram no Barreirense. Negociaram o meu filho sem que eu e a mãe soubéssemos. Um dia, apareceu cá em casa um senhor que vinha buscar o Fernando para o Benfica, pois já se tinha efectuado a transferência. Ia ganhar quatro contos por mês! Mais tarde vim a saber que os directores do Barreirense haviam recebido cerca de 750 contos e então quis saber como era. Perante a nossa mágoa, o Benfica deu-nos 25 contos. Foi, então, que os senhores do Barreirense quiseram dar-nos 20 contos, depois de abusivamente receberem 750! Como homem honesto e trabalhador, não ia vender-me por 20 contos e não aceitei coisa alguma. Não precisava de esmolas. Ainda tinha braços para trabalhar e para que nada faltasse ao meu filho.»
Estreou-se em Março de 1976, com 17 anos e 25 dias (um recorde ultrapassado por… Marco Caneira, em 1996, que se estreou no dia do aniversário). Substitui Toni ao intervalo e entusiasma desde logo a massa adepta. Mário Wilson deu-lhe o baptismo, Mortimore apoiou-se no seu talento para ir buscar, num sprint épico, o campeonato á cova dos leões, que começaram bem e acabaram a nove pontos (quando a vitória valia 2…).
Estávamos em 1976-77. Até 1984 construiu uma lenda e tornou-se figura de culto no futebol português, quer fosse pelo que fazia no Benfica quer pela Selecção.
A completa explosão internacional no Euro 84 abre-lhe as portas da Ligue 1 e do Bordéus, a equipa que emprestava á França campeã europeia um sem número de craques – Giresse, Tigana, Tusseau ou Lacombe. Chalana seria a estrela da companhia no assalto ao êxito.
Mesmo a um nível aquém do que poderia fazer e que nunca atingiu desde aí, Chalana levou os Girondinos ás meias-finais da Taça dos Clubes Campeões Europeus (onde perderam 3-2 no agregado contra a Juventus de Platini): nessa caminhada há o desempate por penalties com o Dnipro, um daqueles momentos que traçam os limites entre bons jogadores e os verdadeiros artistas da bola. Chalana, apesar de quase sempre confrontado com muitas e exaustivas contrariedades, era homem que se diferenciava nos momentos de maior pressão.


Aimé Jacquet era o seu treinador, o mesmo general dos Le Bleus campeões mundiais de 1998 – famosa ficou a sua insistência em Guivarc’h, em detrimento de Henry ou Trezeguet – e talvez por aí se explique um pouco do insucesso de Fernando em terras gaulesas.
Isso, a inveja de alguns colegas, as lesões, o circo mediático que Anabela – sua esposa – nunca teve lucidez ou boa vontade para controlar e as consequentes saudades de casa provocaram o regresso á Luz, derrotado, em 1987. Reestreou-se em Outubro desse ano, depois dum período de recuperação física e anímica.
Diz quem viu que a Luz veio abaixo, puro extâse – depois de muito se assobiar Pacheco, ainda menino, que sem ter culpa nenhuma acabou por se tornar um estorvo ao ser titular naquele dia.
Mas não era o mesmo Chalana. O atleta que até 1984 parecia sobrenatural era agora apenas bom jogador – impensável avaliação para quem o tinha visto no auge e admirado o seu génio quando nenhuma bola do mundo era incontrolável para aquele meio palmo de gente. Continuavam a surgir momentos que outros nunca imaginariam sequer executar, mas de forma muito menos frequente.
Sven Goran Eriksson volta em 1989 com a missão de devolver o Benfica á Taça dos Campeões Europeus. Conseguiu-o, levando a equipa á final de Viena em 90, mas foi ele quem teve a coragem de afirmar que Chalana não era mais insubstituível. Se Toni no ano anterior tentara tudo para recuperar o craque amigo, foi Sven quem transmitiu: não dava mais para atleta de alto nível.
Rotação, talvez. Nessa época de 1989-90, 27 jogos. 12 a titular, 15 como suplente utilizado. Precipitou-se o fim, talvez de maneira demasiado abrupta. Chalana guardou rancor, claro está. «Pior do que as lesões que sofri, foi ter encontrado Eriksson no Benfica, ele sim é que me deu a machadada final. O sueco talvez tenha sido a maior lesão da minha vida!» vociferou á A Bola na altura. Final triste.
Passaria por Belenenses e Estrela da Amadora. Em 1992 era jogador livre e pronto a retirar-se. Em 1994, na miséria depois de um rol de más escolhas, é ajudado pelo Benfica, que o faz entrar pela porta das camadas jovens e dá-lhe cargos como treinador de formação.
Em 1999 é campeão nacional de Juniores, em 2002 estava na equipa técnica de Jesualdo Ferreira quando este é despedido depois de ser eliminado pelo Gondomar (II divisão B) da Taça de Portugal, em plena Luz. Chalana assume o jogo seguinte, é ele quem reinventa Miguel – que de extremo inconsequente passou a um dos melhores laterais da Europa – e acolhe Camacho para a recuperação do Benfica moderno.


Como quase durante toda a vida, foi sempre Chalana dos primeiros prontos a servir o Benfica, nas piores circunstâncias possíveis, sem medo de repercussões na sua imagem. Pura dedicação e a simplicidade dum homem heróico. Pega na equipa em 2007-08 depois de, ironicamente, Camacho sair. É ele quem aguenta o barco naquele final de época penoso, com a derrota por 5-3 em Alvalade pelo meio. Quando todos se afastaram, foi Chalana quem deu a cara.
Agastado com a ingratidão mas de consciência tranquila, voltou ás camadas jovens para inspirar jogadores e treinadores. Rui Vitória, Bruno Lage e Renato Paiva foram os mais contundentes nas demonstrações públicas de carinho para com a lenda – de forma consistente. Era Bruno Lage que estava no banco quando, na comemoração do aniversário de Chalana a 10 de Fevereiro de 2019, ordenou a equipa a impôr-se com um 10-0, exigindo que o último golo fosse do 10 Jonas.
Um daqueles fenómenos numerológicos que se repetiu a 10 de Agosto de 2022, quando Fernando se despediu de nós. Outro detalhe: Jordão, seu grande amigo dentro de fora dos relvados – fizeram formação juntos no Benfica -, nascera a 9 de Agosto.
E talvez sejamos obrigados a não ser insensíveis em relação ao destino e notar a tristeza com que Bernardo Silva se despediu do velho mestre, crucial na sua ascensão enquanto futebolista e o único que, a determinada altura, viu no médio as qualidades que por hoje o tornam num dos melhores do planeta.
«Quando tinha 16 anos, numa fase difícil, fez-me acreditar quando nem eu acreditava. Nos estágios, batia à porta do meu quarto para me dizer que eu ia ser um grande jogador e ia ter muito sucesso»
Chalana chamava-lhe Messizinho e via nele o único á sua semelhança, o único que se entregava completamente á arte da técnica e do raciocínio para ultrapassar as debilidades físicas. O SL Benfica já informou que retira a camisola ‘10’ pelo menos durante 2022-23.
Fica uma sugestão a aproveitar a deixa deliciosa do tal destino: a ‘10’ só poderá voltar a ser utilizada se estiver nas costas de Bernardo Silva. Haverá homenagem que mais faça sorrir o Pequeno Genial, lá do alto do Quarto Anel?"

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