"O Grande Confinamento tem sido também uma oportunidade para o regresso ao futebol como ficção. De certa forma é um reencontro com a essência da paixão pelo jogo. A ausência de competição tem-nos empurrado para a recuperação nostálgica de partidas antigas, que em boa hora os canos televisivos têm aproveitado para reproduzir. Mesmo quando conhecemos o desfecho de antemão, descobrimos nesses desafios remotos uma forma renovada de ver futebol. Ou porque o jogo era praticado a um ritmo diferente, ou porque redescobrimos um saudável caos táctico que já não recordávamos ou, ainda, porque ficamos com a certeza de que a classe é mesmo intemporal e não precisa de capacidade física ou de modernidade táctica para se revelar - é discernível ao primeiro toque na bola.
A transmissão em 'loop' dos jogos de ontem é melhor do que nada, podemos pensar. Mas talvez não seja apenas isso. Acredito num velho axioma: ninguém gosta verdadeiramente de futebol se só começou a gostar de futebol na idade adulta. O Javier Marias, aliás, numa muito reproduzida definição do gosto pelo jogo, escreveu um dia, com exactidão, que 'o futebol era o regresso semanal à infância'. A afirmação capta a essência dessa paixão juvenil que nos acompanha ao longa da vida, mas que, acima de tudo, encontra um momento fundador nos primeiros jogos, nas primeiras idas ao estádio. Sem esse pecado original temo que até seja possível alimentar algum entusiasmo maduro em torno do jogo, mas é curto, ficará sempre a faltar a exaltação fundada em memórias iniciais, por definição reescritas e involuntárias. O tempo de facto vivido é sempre muito distinto do tempo físico e sucessivo. O futebol funda-se no tempo vivido na infância. E isso faz muita diferença.
Vivi poucas tardes como a do dia 18 de Abril de 1990. Digo tarde porque nas saudosas noites europeias, encaminhava-me para a velha Luz logo depois de almoço. O 3.º anel repleto, sentado no varandim, e longas esperas que ajudavam a criar tensão, assim, como o medo cénico que se foi afastando dos estádios confortáveis de hoje. Eu tinha 15 anos e o meu quotidiano organizava-se ao ritmo dos jogos do meu Benfica. Nesse noite, tudo convergiu num momento épico: o canto marcado pelo Valdo, o desvio subtil do Magnusson e o golo do Vata. Do meu lugar de sempre no 3.º anel foi essa felicidade apoteótica que vi e que vivi.
30 anos passados, Vata confirma invariavelmente que o golo que eliminou o Marselha foi marcado com o ombro. O pior que eu podia fazer a mim próprio e às raízes do meu encantamento absoluto com o futebol e com o Benfica (a ordem é arbitrária) era desmenti-lo. Entre a memória e a realidade, seria um erro colossal escolher a realidade. Ainda mais num momento como o que vivemos agora."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!