"Para além da morte, julgo que nada será mais dilacerante que a privação da nossa liberdade; mais ainda quanto tal se verifique sem nossa responsabilidade directa, como é o período que atravessamos desde o mês passado. Dizem uns que o pior já passou, dizem outros que foi tudo alarmismo e nada mais não é que um surto de gripe que este ano veio atrasado. Não vou debater aqui isso, deixo para quem sabe de epidemiologia, ou seja, um campo da ciência que trata dos vários factores genéticos, sociais ou ambientais e condições derivados de exposição microbiológica, tóxica, traumática, etc. que determinam a ocorrência e a distribuição de saúde, doença, defeito, incapacidade e morte entre os grupos de indivíduos (in Wikipedia); quero sim abordar o que está e pode acontecer ao desporto em geral e futebol, em particular.
Todos os jogos têm implícita a competição, a superação de si para vencer o outro, na prática de uma modalidade que seja organizada institucionalmente e tem regras a serem observadas; mais ainda, acrescente-se, exige público que habitualmente gosta ou é apaixonado por essa modalidade, o que leva os praticantes a transcenderem-se pela magia do aplauso.
Embora nem sempre, o futebol traz-nos essa magia através dos artistas eleitos que transformam situações mornas em situações de enorme efervescência, quando invertem resultados não esperados, quando falham o golo de baliza aberta, ou marcam golos ditos impossíveis num período do jogo para além do tempo regulamentar. Além dessa magia, o futebol traz-nos ainda a supremacia do colectivo, do contacto físico, do aroma do balneário, das explosões de alegria/tristeza vivida em grupo, das viagens e refeições em equipa e seu staff, enfim, sempre em contacto com outros.
No período que vivemos, todas estas práticas nos foram “roubadas” pelas organizações de saúde pública. Estariam sobretudo a pensar nas enormes massas de indivíduos à volta do jogo, ou seja, do público que enche estádios. E será este o foco da minha opinião, é que o futebol, como tantas outras coisas na vida, é vivido num ambiente de extrema desigualdade entre um 1º e talvez um 5º mundo. A massa humana que se movimenta em torno do futebol varia na razão inversamente proporcional, aderindo em multidão no 1º mundo e juntando-se apenas para conviver, como num café, nos jogos de 5º mundo.
Tal facto exige que se olhe para as implicações da pandemia de forma igualmente diferenciada. Um 1º mundo com regras inexoráveis de economia e competição globalizadas e um 5º mundo com regras vindas das origens do desporto (tão bem descritas no filme recente sobre a história do jogo, com raízes na rivalidade de bairro ou de pequena cidade, onde se assistia aos jogos para conviver e beber um copo entre amigos – The English Game, Netflix).
Terão a UEFA, FPF e LIGA agido adequadamente neste período? Como se pode perspectivar a competição no futuro? Estão as diversas colectividades (com e sem SAD) preparadas para gerir neste ambiente moderno e globalizado?
Do ponto de vista económico, uma das leis inexoráveis que foi abalada foi a da Oferta e da Procura que, normalmente explica a variabilidade dos preços desde que haja condições para livre funcionamento dos mercados – agentes em grande nº, onde cada um por si não consegue influenciar o mercado. Posso ter um produto excelente para vender, mas se não houver quem o compre, o preço terá de ser muito baixo, perto de zero (transmissões pela TV); o produto pode nem ser muito bom, mas se houver muita gente a querê-lo, o preço sobe sem controlo (as máscaras antivírus).
Mas repare-se agora na desigualdade da situação entre um clube de nível europeu e um de valia regional. Ao nível europeu há muito a perder, os seus activos (jogadores de milhões) deixam de ser vistos, ficam mais ‘velhos’ e desvalorizam. Ao nível regional, deixa de haver uma razão para as pessoas se juntarem, mas os activos (jogadores de tostões) desvalorizam pouco ou nada. Reagem os clubes de forma diferenciada: os grandes baixam os salários milionários, mas não acontece nada de grave às famílias; os pequenos deixam de pagar os tostões e colocam centenas de milhares à míngua, com fome e no desespero das suas famílias. Dito isto, “a bomba” não bate em todos por igual e os clubes têm de estar organizados para reagir com humanidade e sem perdas.
Mas faz sentido haver jogos à porta fechada, sem a efervescência das multidões só para se atribuírem os prémios? Tenho as minhas dúvidas. Não estariam incluídos na definição de desporto, pois sem público as performances são diferentes. Os resultados estarão desvirtuados. Imaginam um golo não ser comemorado entre os elementos da equipa?
Porque se tem medo de “congelar” as provas, até ao dia em que exista total liberdade do exercício desportivo?
Em minha opinião, o momento aconselharia a uma profunda reflexão e reorganização dos clubes e das organizações. O que desejam os artistas? Querem colocar em risco a sua actividade?
Louvo a atitude dos membros da selecção de entregarem metade do seu prémio para apoio do desporto não profissional. Aí cumpriu-se a humanidade.
Para terminar falemos da evolução de uma qualquer actividade económica, coisa em que o futebol de elite se transformou, num negócio ou indústria como alguns erradamente o designam (uma indústria tem outros pressupostos).
Toda a actividade aparece porque existe uma necessidade humana associada. O futebol deixou de ser, de repente, uma necessidade humana essencial, o que se pode verificar pelo número de jornais desportivos e secções desportivas de outra imprensa e ainda ao número de programas desportivos na televisão.
De repente…. o silêncio, que todos aceitam e até agradecem. Ficaram apenas os programas dos clubes de topo e com poder e dois programas desportivos credíveis (A Bola e 11). Tudo o que era supérfluo (felizmente) desapareceu. Só metiam lixo na engrenagem.
Seguiu-se o desenvolvimento natural da economia. Se necessário vão aparecendo mais, com dimensão parecida, mas haverá sempre uns poucos que se evidenciam e passam a dominar o mercado. Têm os seus jogadores e compram o quíntuplo de outros que depois cedem/emprestam a clubes de menor dimensão, perpetuando assim o poder negocial no âmbito deste negócio. E os agentes que surgiram? No passado os negócios eram feitos pelos presidentes ou direcções dos clubes. Hoje o negócio já dá para inúmeros intermediários e até para pagar decentemente aos árbitros. Ou seja, quantos mais intervenientes no negócio mais aumentam os custos e os prémios.
Serão estes os problemas que temos de saber dar resposta. Esta indústria dá para quantos? Em que moldes? Com que qualidade? A que preços? Caminhamos para um Campeonato Europeu entre os clubes europeus? E como deverá ser feito o apuramento para entrar nesse campeonato (lembremo-nos da NBA)? O nosso papel é fornecer jogadores bem formados para essas equipas? Deveremos comprar jogadores a preços que o nosso mercado permita?
Muitas perguntas e algumas ideias que me assolam e cuja resposta espero me possam todos auxiliar. Estarei disponível para prosseguir. Cuidem-se.
PS: Hoje faz anos, esta segunda-feira, 20 de Abril, o meu querido amigo Prof. Manuel Sérgio e queria dedicar-lhe esta prosa."
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