"Há dezasseis anos, escrevi eu, no livro da minha autoria, Alguns Olhares sobre o Corpo, editado pelo Instituto Piaget: “Não é pensando que somos, mas é sendo que pensamos. O espírito nasce, no meu modesto entender, da complexidade humana” (p. 15). E escrevi também: “Cifram-se em três as grandes posturas diante do corpo: as antropologias pré-filosóficas, ou religiosas; as antropologias filosóficas, de feição dualista; as antropologias que defendem a complexidade humana” (p. 28). Nas antropologias pré-filosóficas, a força e a destreza humanas resolviam os problemas mais instantes do trabalho e da vida. O homem ainda não se descobria como sujeito dotado de consciência e de liberdade. Marx lembra-nos, em muitos dos seus textos mais fundantes, a produção social da consciência. “A biologia molecular, ao desmontar os seres vivos e ao analisar as moléculas que os constituem, mostrou que todos eles, desde a bactéria ao homem, são constituídos pelos mesmos tipos de moléculas. Por diferente que pareça uma açucena de um elefante, vamos neles encontrar o mesmo código genético e a mesma estratégia bioquímica. Os blocos fundamentais são os mesmos. Apenas diferem as formas em que eles se imbricam e estruturam” (Luís Archer, Temas Biológicos, Problemas Humanos, Edições Brotéria, 1981, p. 28). Também em 1981, noutro livro da minha autoria, filosofia das actividades corporais (editorial Compendium, Lisboa), argumentava eu: “Que é o corpo? O mesmo que organismo, dirão os biólogos. Simplesmente, no entender de Goldstein, fisiologista célebre, importa considerar o organismo como uma totalidade, na qual qualquer delimitação é artificial e cada expressão um fenómeno desta totalidade. Com efeito, é muito difícil, na totalidade psicossomática, que é o Homem, traçar fronteiras definitivas entre o corpo e a alma, entre a matéria e o espírito” (p. 32). No período filosófico, triunfou o dualismo alma-corpo, como reflexo do dualismo senhor-servo. Toda a justificação da Verdade, do Bem e do Belo reside, unicamente, na Razão. A ideia de progresso ressalta do livro de Condorcet (1743-1794), Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Despontava então a Primeira Revolução Industrial…
“A Primeira Revolução Industrial ocorreu entre 1760 e 1840, aproximadamente. Desencadeada pela construção de caminhos de ferro e pela invenção da máquina a vapor , deu início à produção mecânica. A Segunda Revolução Industrial, que começou no final do século XIX, prolongando-se pelo início do século XX, tornou possível a produção em massa, impulsionada pelo advento da electricidade e da linha de montagem. A Terceira Revolução Industrial começou na década de 1960. É habitualmente chamada revolução dos computadores ou revolução digital (…). A Quarta Revolução Industrial não se refere apenas a máquinas e sistemas inteligentes e conectados. O seu alcance é muito mais vasto. Ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente em áreas que vão desde o sequenciamento genético à nanotecnologia, passando pelas energias renováveis, ou pela computação quântica. É a fusão destas tecnologias e a interacção entre os domínios físico, digital e biológico que torna a Quarta Revolução Industrial radicalmente diferente das revoluções anteriores” (Klaus Schwab, A Quarta Revolução Industrial, LEVOIR, edição portuguesa, 2017, pp. 10/11). Ao nível da produção industrial, o corpo é francamente desvalorizado como instrumento de produção, se bem que valorizado pela biomedicina, designadamente após Laennec (1781-1826) e Claude Bernard (!813-1878). A propósito deste médico (um dos nomes maiores da História da Medicina), não esqueço o que Bergson disse do livro Introdução ao Estudo da Medicina Experimental: “Este livro foi para nós o que o Discurso do Método foi para o século XVIII”. A técnica amanhecente não desponta de um corpo hábil, que tudo tenta resolver, mas de um corpo especializado, fragmentado, típico do “homo mechanicus”. Aliás, por mais que especializemos o corpo, ele não alcançará o que dele exige a hora presente, sem as “próteses corporais”, ou seja, “todos os recursos tecnológicos que permitem ao corpo responder às crescentes solicitações do entorno (automóvel, celular, computador, fax, escâner, etc.”, servindo-me das palavras de David Rodrigues, no seu livro Os Valores e as Actividades Corporais (Summus Editorial, S. Paulo, 2008, p. 17).
E, assim, se o corpo deixou de ser o principal fator de produção e de altos desempenhos, é preciso preservar o espaço da cultura. No meu pensar, descobre-se, na Evolução, um sentido em que do menos complexo se avança para o mais complexo. Não há sentido último, no desenvolvimento da Vida? Tudo se processa com Jogo, Lotaria, Acaso, Necessidade, Liberdade, Construção? Apoiado em Teilhard de Chardin, acredito numa teleologia (ou, para ser mais preciso, uma teleonomia) pois que a árvore da vida, desde as suas raízes até ao ser humano tem uma evolução certa: desde o menos complexo ao mais complexo. Os Direitos do Homem testemunham um ser de extrema complexidade. Onde cabe, aqui, uma referência à linguagem e… ao nome de Ferdinand de Saussure, que se encontra associado a uma verdadeira revolução nas investigações sobre a linguagem. Para ele, os factos humanos, como factos sociais, têm estruturas semelhantes às estruturas da linguagem. Recordo, a propósito, que o psiquiatra e filósofo Jacques Lacan, a partir de uma funda convicção de que o inconsciente se encontra estruturado como uma linguagem, pôde reformular, em boa parte, os grandes princípios da psicanálise que Freud fundara. Quem, como eu, trabalhou num clube desportivo, de 1964 a 1992, isto é, durante 28 anos, e simultaneamente visitou alguns dos mais conhecidos centros desportivos europeus daqueles tempos idos, pode hoje testemunhar como tudo evoluiu - os homens, as mulheres e as coisas, quero eu dizer: desde o futebol-negócio, com objectivos comerciais, as instalações, os equipamentos e os vários materiais desportivos até à promoção e expansão do desporto feminino, passando perla releitura dos valores educativos do desporto… para todas as idades. E visando a transcendência física e o sucesso! No entanto, a uma des-construção crítica do corpo e a uma homóloga re-construção , com transcendência e portanto criatividade, se há transcendência física, também há transcendência emocional e mental e espiritual pois que, na mesma totalidade, tudo está em tudo…
Demais, “o que torna a vida digna de ser vivida é o próprio excesso da vida: a consciência de que existe qualquer coisa para a qual estamos dispostos a arriscar a vida (…). Só estamos realmente vivos, se estivermos prontos a correr esse risco. Chesterton mostra-o bem, a propósito do paradoxo da coragem: “Se um soldado cercado pelo inimigo quiser encontrar uma saída, tem de aliar um intenso desejo de viver a uma estranha indiferença, em relação à morte” (Slajov Zizek, Bem-vindo ao deserto do real, Relógio d’Água, Lisboa, 2006, p. 118). Se bem penso, tem de acreditar que há mais vida, para além da vida ou que há valores, nesta vida, indispensáveis ao processo autopoiético e hétero-paidêutico da própria história humana. Mesmo como homem (ou mulher) “pós-metafísico”, um destemor arrojado supõe a noção de “eternidade”, seja a “eternidade” terrena, chamada memória, seja uma eternidade no mistério de Deus. No passado dia 14 de Julho de 2019, sagrou-se campeão mundial de hóquei em patins a selecção portuguesa desta modalidade. Eu próprio, que vivi intensamente o jogo, pela TV, entendi a lógica determinista, o senso analítico, o sentimento das proporções do conhecimento científico do treinador. Mas, sem alguma vez raciocinarem contra a lógica, na vitória dos hoquistas portugueses descobria-se um sentimento que seduzia o seu raciocínio: o amor pátrio! Quando Gago Coutinho e Sacadura Cabral, no contexto das comemorações do Primeiro Centenário da Independência do Brasil, completaram, em 1922, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul – levavam consigo o saber científico de dois prestigiados aeronautas? De facto, assim foi! Mas levaram também os Lusíadas! Não há vitórias inolvidáveis, sem horas de reflexão, de estudo e de muito treino, que preparam os momentos de coragem, de audácia e decisão. São palavras do treinador Renato Garrido: “Somos treinadores, planeamos as coisas, tentamos antecipar os jogos, mas tudo se resume à interpretação dos jogadores” (A Bola, 13 de Julho de 2019). As pátrias fizeram-se com cientistas, filósofos, mas também com poetas e heróis. O desporto, nas suas horas mais significativas, também."
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