"A primeira vez que me lembro de sonhar, recordo-me que o sonho era o de ser jogador de futebol. Queria jogar à bola, divertir-me dentro de quatro linhas e fazer disso vida. Brilhavam-me os olhos quando ouvia o apito inicial, fosse do jogo da minha equipa, vestida de vermelho e branco com a águia ao peito, ou daquelas que ainda nem conhecia e apenas sabia qual era qual quando uma marcava golo e via o marcador subir para um do lado de um dos emblemas. Ia para o sofá ver televisão, quando ninguém estava lá, metia em canais onde se jogava futebol e via a bola a rolar, chegando até a ver partidas em que a imagem desfocava devido à fraqueza do sinal na antena parabólica.
As primeiras lágrimas que me lembro de deixar cair – que não fossem relacionadas com birras de criança – foram pelo Simão Sabrosa, quando noticiavam uma possível despedida do glorioso ou a derrota de Portugal frente à Grécia na final do Europeu de 2004.
Orgulhosamente vestia os mantos sagrados – e não via aquelas camisolas como sagradas só pela expressão – do Benfica e da selecção nacional e passeava-os na escola com uma alegria extra que fazia o coração mais palpitante que o normal.
Jogava futebol nos intervalos das aulas, nos treinos do meu clube depois da escola e, em dias que não havia treino, juntava-me com os meus amigos para uma partida feita com uma bola e duas balizas cujos postes eram feitos de mochilas ou de camisolas que as nossas mães nos tinham obrigado a vestir por cima das t-shirts do Benfica, Sporting, FC Porto, Barcelona, Real Madrid, Manchester United, Juventus ou até de mais modestos, como o Boavista.
Esta felicidade, este modo de transe acompanhou-me, não só a mim, como a milhões de outras crianças deste mundo. Uma emoção que quase chega a ser viciante. A bola a rolar na relva, os cânticos da nossa equipa que são mais altos que os da outra, os equipamentos que são mais bonitos que no ano anterior, as botas de futebol que desejamos ter nos pés para fazer inveja aos amigos no treino – dormindo com elas nos pés, no caso de ter a sorte de as receber como prenda de aniversário –, o grande drible do nosso jogador favorito, o remate que tirou tinta ao poste, o “hino ao futebol” que o comentador diz na televisão, o “mas que perigo” que o comentador diz no FIFA, o “atenção ao livre” que avisa antes da bola ser rematada pelo jogador mais habilidoso para o fazer. E depois… depois acontece isto:
A trajectória da bola desde que sai do impulso do atleta, enquanto avanço lentamente no sofá em forma de antecipação; a bola avança lentamente em direcção à baliza, mas ainda tem de ultrapassar o guarda redes; parece que a bola está fora do seu alcance, e eu a erguer-me da cadeira a prever o desfecho; a bola a chegar à linha de baliza, passou as mãos do último homem adversário, então olho frenético para os que me acompanham; o esférico toca nas redes e tudo deixa de estar em câmara lenta; grito para a televisão, abraço os meus companheiros, ergo os braços em celebração; estou em pé, senão a saltar em euforia; fecho com firmeza os punhos e saboreio o momento que me leva de volta à minha infância.
Não há explicação para gostar deste desporto da maneira que gosto. Não há uma razão lógica que consiga dar. É belo, entusiasmante, toda a rotina, toda a festa que está envolta nesta actividade. O convívio, o espectáculo nas quatro linhas, a derrota que nos faz ferver, a vitória que nos faz sorrir. O perder que nos faz melhorar, o vencer que nos faz sentir recompensados. A magia dos que por ali andam a dançar com a bola nos pés e nos enfeitiçam por curtos 90 minutos de show de bola.
Se abriram e leram este texto à espera de que nele estivesse a resposta à pergunta que vocês próprios têm na cabeça e não conseguem responder, lamento ter-vos induzido em erro, mas não o consigo fazer. Na verdade, não encontro razão. Simplesmente adoro isto. Tal como vocês. E é algo que vos vai acompanhar até ao fim dos nossos tempos, sem nunca sabermos bem porque adoramos tanto isto. Mas adoramos, e, assim que uma época termina, estamos prontos para o adorar uma e outra vez."
Pedro Afonso Estorninho, in Bola na Rede
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