"Os anos atropelam a gente e não olham para trás nem pedem desculpa por todos os desenganos que nos trazem à medida que vão de mão dada connosco pela viela sinistra que vai dar à porta da velhaca senhora da gadanha.
Os cães da madrugada ladram-me aos tornozelos da tristeza. Havia uma velha música de Umberto Bindi que dizia:
”Ecco/ La musica è finita
Gli amici se ne vanno
Che inutile serata...”
É isso. Amigos que partem e eu sobro para lhes ir escrevendo, cabisbaixo, os epitáfios. O Vítor Campos e o Camolas, o Chibanga, Lennart Johansson, Manuel José Homem de Melo. Perco-me no QWERT das páginas de obituários. Ou nas páginas de homenagem a quem já não consegue lembrar, meu amigo Fernando Chalana, perdido lá no labirinto do seu imenso talento.
Eu costumava ligar para casa do Marinho Peres, no tempo em que os telefones obedeciam às leis dos fios, e ouvia inevitavelmente, do outro lado, a sua voz cava: “Fala, garoto!” Ele gostava daquele tratamento de tipo mais velho, uns sete anos mais do que eu, nessa altura uma vida bem preenchida, e depois partíamos na grande aventura dos almoços prolongados com histórias e episódios infinitos, desbobinados à medida da sua memória. Foi assim em Guimarães, em Lisboa, no Funchal... Marinho eternamente amigo; eternamente divertido; profundamente bom.
Parece que já lá vão muitos anos, e vão mesmo. Os anos atropelam a gente e não olham para trás nem pedem desculpa por todos os desenganos que nos trazem à medida que vão de mão dada connosco pela viela sinistra que vai dar à porta da velhaca senhora da gadanha. Em Sorocaba, Marinho Peres vai recusando passar a fronteira dessa porta que só tem para lá dela os confins do nada. Canalha, um AVC apanhou-o distraído, talvez a rir-se, ele que sempre fez questão de rir, de rir muito, de que todos se rissem muito em seu redor.
Vi muitos treinos do Sporting sentado a seu lado num banco de madeira corrido, junto à linha lateral do antigo campo de treinos de Alvalade, que ficava quase em frente da porta principal do estádio, e ele gostava de observar à distância para, de vez em quando, ir até lá corrigir os movimentos com o seu ar de monstro descabelado que a alma recusava a alimentar por muito tempo. E gostava de ensinar, à sua maneira, aquilo que pretendia dos jogadores. Dava-me uma cotovelada e dizia: “Vê! Vê! Não tem como enganar. Aquele cara lá na frente vai cair outra vez no impedimento!” Vinha o lance e era tal e qual como descrito, um passe de Figo ou Balakov, daqueles de bandeja com pastel de bacalhau, cervejinha, palito e tudo, direito aos pés do avançado-centro, e o apito do adjunto interrompendo por fora-de-jogo. “Eu não te disse!”, ria Marinho um riso de nervos: “Vá tomá no cu dele!!!”
Mario Peres Ulibarri, de seu nome completo, levou uma vez o Sporting a 11 vitórias consecutivas nas primeiras jornadas do campeonato. Até no Bessa, onde os leões costumavam sofrer como cachorros vadios, venceu por 3-0 com um bela exibição de um tal Careca que, para Sousa Cintra, era a coisa mais parecida com uma mistura de Eusébio e de Pelé. Estive lá nessa noite chuvosa do Porto. Depois, em Chaves, um empate por 2-2, desperdiçada a vantagem de 2-0, abanou a equipa de tal forma que não teve arranjo. O costume.
Nessa semana fui ao gabinete de Marinho Peres, em Alvalade, para uma grande entrevista. Pedi-lhe para se deitar na mesa das massagens e ser aí fotografado pelo meu querido Nuno Ferrari, outro dos que já partiram. O moto da conversa deveria ser: “O leão na mesa do psicanalista”. O Marinho contou o regresso aos treinos do dia seguinte ao empate: gente de ombros curvados, conversas em murmúrios, caras fechadas, nem o estralejar de uma gargalhada. No fim, desabafou: “Coisa tremenda, garoto! Ganhámos 11 partidas e, no primeiro erro, só ouço todo o mundo dizer que já não vai ser este ano, que é tudo uma merda, que somos um clube de infelizes, sem sorte nos jogos...” Assustava-o aquela mentalidade desistente. Não foi campeão, mas chegou à meia-final da Taça UEFA. Depois andou por aí, de novo no Belenenses, por mais do que uma vez, no Marítimo também.
“Nascondendo la malinconia
Sotto l’ombra di un sorriso”,
recordo-me dele com saudade. E só posso dar-lhe um conselho de amigo antigo: “Se a morte chegar à tua beira, responde-lhe como costumavas fazer – ‘Vai tomá no teu cu, garota!’”"
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