"Olho para o menino e sinto-lhe a alegria da pureza da semente, de que falava Miguel Torga. No drible, no arranque, no remate, no golo: o mais importante é a bola. Como se fosse Peter Pan, o rapazinho que não queria crescer.
Torga, o Poeta da Montanha, que eu gosto de citar, escreveu uma vez, em 1957, salvo erro:
'Pois eu gosto de crianças
Já fui criança, também...
'Não me lembro de o ter sido;
Mas só ver reproduzido
O que fui, sabe-me bem.
É como se de repente
A minha imagem mudasse
No cristal duma nascente,
E tudo o que sou voltasse
À pureza da semente'.
Outro dia estava a ver o João Félix jogar e lembrei-me deste poema. Faz sentido. O João é uma criança. Assim, de forma meio assustada, calculei que terá idade para ser praticamente meu neto. Talvez por isso, ao olhar para ele, dentro do campo, sobre a relva, com o aparelho nos dentes, a franja desarrumada e os sinais do acne juvenil, não consiga ver para lá da criança que é.
Não lhe adivinho o futuro. Reconheço-lhe o atrevimento.
Talvez ele venha a atingir o topo do mundo. Se o conseguir não ficarei admirado.
Mas é apenas uma criança.
Que joga a bola como todas as crianças.
Só que em deus qualquer, daqueles que gostam de futebol, resolveu presenteá-lo com o dom único de a bola ter por ele a preferência que não tem por outros. Escolheu-o. Obedece-lhe. Enrola-se nos seus pés como uma cachorrinha abandonada que precisa de mimos e sabe que os pés de João nunca serão capazes de a tratar mal.
Mesmo que criança ainda.
Um garoto. Que joga como se ainda brincasse na sua liberdade suprema de infância irremediável. A primeira vez que Nelson Rodrigues, o grande mestre brasileiro da crónica, viu jogar Pelé, publicou no seu jornal:
'Examino a ficha de Pelé e tomo um susto:
- dezassete anos!
Há certas idades que são aberrantes, inverosímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezassete anos jamais. Pois bem - verdadeiro!'
Quase me apetece escrever de volta: eu, com mais de cinquenta e cinco, custa-me a crer que alguém possa ter dezanove anos. O João tem! Verdadeiro!
A sombra de Peter Pan
Digo-vos com a sinceridade do costume de já uma década nestas vossas páginas a escrevinhar sobre tudo e mais alguma coisa: essa crónica de Nelson Rodrigues é absolutamente admirável. Tão obra de arte como uma peça de piano de Prokofiev, o mestre da clássica elegância. Querem ver? Querem ver? 'Olhem Pelé, examinem suas fotografias e caiam das nuvens. É, de facto, um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme de Brigitte Bardot, seria barrado, seria enxotado. Mas reparem:
- é um génio indubitável.
Digo e repito:
- génio.
Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão:
- 'Como vai, colega?'
De facto assim como Miguel Ângelo é o Pelé da pintura, da escultura, Pelé é o Miguel Ângelo da bola. Um e outro podem achar graça de nós, medíocres, que não somos génios de cosia nenhuma, nem de cuspe a distância. E que coisa nenhuma, nem de cuspe a distância. E que coisa confortável para nós, brasileiros, saber que temos um patrício assim genial e assim garoto! Vejam:
- dezassete anos!
Na idade em que o pobre ser humano anda quebrando vidraça, ou jogando bola de gude, ou raspando perna de passarinho a canivete, Pelé torna-se campeão do mundo. Estava lá um rei, Gustavo, da Suécia. E viu-se, então, essa coisa que estaria a exigir um verso de Camões: - o rei desceu do seu trono e foi cumprimentar, foi apertar a mão do menino Pelé'.
Irra! Eu gostava de ter escrito isto, sem tirar nem pôr. Mas o Nelson antecipou-se e deixou-me sem palavras.
Só que, tal como ele, o que eu queria dizer é que o João ainda tem idade para andar por aí a jogar a bola na rua, partindo as vidraças dos vizinhos.
Não anda. Veste a camisola do Benfica e joga aquela enormidade que nós temos a felicidade de assistir, com o atrevimento, ou melhor, o descaramento próprio de um menino. E que descaramento, senhores! É de fazer comichões no sangue!
Todos os dias escrevem páginas e páginas sobre o João e sobre os milhões que vale o João, mas ele vale bem mais do que isso, porque o facto não passa por ter idade, ou não, para ver filmes da Brigitte Bardot, passa pela realidade de podermos ver o futebol na sua mais inocente virtude da finta, do remate, da alegria incontrariável do golo.
Eu gostava de continuar a vê-lo jogar assim para sempre, como um Peter Pan, o rapazinho que não queria crescer.
Mas o João vai crescer e cair dentro do mundo do futebol sem contemplações.
Vejo-o com a bola nos pés e vejo em garoto feliz.
Na estrada para ser homem.
Que nunca, nunca perca a pureza da semente."
Afonso de Melo, in O Benfica
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