"Tio morreu para salvar Che Cuevara duma emboscada; Na sua casa há túnel que vai dar ao cemitério de Fidel
1. De pequeno se lhe notou tendência de correr para fora de casa - para jogar caricas, beisebol, futebol. «Não marcava muitos golos, naqueles jogos em que púnhamos duas pedras a fazer de baliza, era mais defesa». O pai era treinador de atletismo, a mãe andava pelas ruas de Santiago a vencer o que pudesse: roupas, batata doce, bananas, legumes. «Sim, vida difícil: o nosso pequeno almoço era pão com óleo e café, o almoço tinha de ser, muitas vezes, ovo com arroz, melhor só ao jantar, em que já havia bocado de carne». O boxe foi a sua primeira paixão - o pai o desviou de lá...
2. Pio e Toi, dois dos tios, foram heróis na revolução que desfez a ditadura de Fulgêncio Baptista. No DN, contou-o: «Pio morreu numa emboscada a Che Guevera, acabando por salvá-lo. Toi vingou o assassinato de Frank País. O governo de Fidel esqueceu tudo isso. E perto da casa onde vivia Toi, havia túnel que ia dar ao cemitério, onde agora está sepultado Fidel, Frank País, Che Guevara e outros guerrilheiros iam muitas vezes a essa casa, o túnel era para a fugirem se fossem alvo de emboscada».
3. Aos seis anos começou a aparecer pela pista de Santiago onde o pai treinava. Aos 14 anos pô-lo no triplo salto - apesar dele gostar mais do comprimento. Poucas eram as condições de treino: o campo era de basebol, os exercícios de saltos na relva. Sem ténis, nem roupa conforme - descalço saltava.
4. Da primeira vez que foi a Havana (e deixou abertas de espanto as bocas de quem o viu...) não lhe permitiram que saltasse descalço (como fazia em Santiago): «Emprestaram-me um par de ténis, senti-me esquisito porque não estava habituado, mas ganhei. No comprimento fiz 7,12 metros e no triplo 15,45. Apesar dessas marcas, não me deixaram ir aos Jogos Olímpicos da Juventude de 2010, a Singapura».
5. Nas competições que fazia em Havana, normal era passar a noite nas bancadas do Estádio Panamericano: «Levámos cobertores para nos taparmos e dormíamos no chão». Por vezes, não - porque aparecia atleta da selecção que, por pena ou solidariedade, e levava, sorrateiro, para o seu quarto no centro de estágio, mesmo correndo risco de ser castigado. Foi o que fizeram, por exemplo, Alex Copello e Guillermo Martínez (até serem apanhados): «Para comer, havia cafetaria aberta 24 horas, comprávamos pão e refresco que se vendia em sacos...»
6. A federação impediu o pai de continuar a treiná-lo em Santiago. Para não ser cortado dos Mundiais de 2013 aceitou passar para Ricardo Ponce, o técnico nacional. Em Moscovo ganhou medalha de prata - e, depois, nos Mundiais de Pista Coberta foi terceiro: «Tinha dor na canela, Ponce queria que fizesse tratamento caseiro com ligas para trancar o corrimento do sangue. Depois, tirava a liga e aumentava a circulação. Era experiência perigosa, pedi, por favor, outro treinador». Claro, o que queria era o regresso ao pai - e afiançaram-lhe que isso não...
7. Acusado de faltar aos treinos, deram-lhe seis meses de suspensão. (Ao pai, impediram-no de voltar a treinar no atletismo - para sobreviver, ainda andou como treinador de basebol). Estava-se já em 2015, quando regressou à competição - e não tardou a passar os 18 metros. Tinha 21 anos - e era efeito dos treinos que continuava a fazer com o pai, em segredo. (Em Pequim voltou a ser vice-campeão mundial).
8. Na Aldeia Olímpica do Rio, exame detectou-lhe fractura de 7,4 milímetros. Ainda assim, queriam que competisse. Recusou - e recambiaram-no para Cuba. Percebeu que só lhe restava uma solução: desertar. O pai já o fizera, estava como treinador na Suécia...
9. Aproveitou estádio em Estugarda para fugir. À espera tinha, clandestino, o pai, no carro que só parou na Suécia. Turcos, espanhóis e italianos correram a desafiá-o para lá. Empresário falou do seu caso a Ana Oliveira - e foi ela que o convenceu a ligar-se ao Benfica. Veio, com o pai, viver em Portugal - num fogacho bateu o recorde de Nélson Évora, já como português ganhou a final da Liga Diamante, para o pódio foi, embrulhado na bandeira nacional, fechou o ano com a melhor marca do mundo no triplo. (Desolado ficara por não o deixarem competir nos Europeus, mas nos Mundiais do Catar já pode estar...)."
António Simões, in A Bola
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