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domingo, 18 de novembro de 2018

O improvável encontro entre Hannah Arendt e Bruno de Carvalho

"Pensei sobre a inusitada ligação acima referida a propósito de uma reflexão para responder a uma questão que me foi colocada sobre a liderança de Bruno de Carvalho, ex-presidente do Sporting. Com base na conjugação de alguns factos do domínio público como a sua eleição com cerca de 90% dos votos, com a maior participação de sempre dos sócios do Sporting nas eleições; por se definir como um presidente-adepto; por assumir que criou a fama de maluco, por conselho do seu tio-avô Pinheiro de Azevedo; pela sua relação próxima com a claque; por ter nos seus corpos sociais individualidades distintas da vida social portuguesa, abordei o assunto com recurso a Hannah Arendt.
Mas quem é Hannah Arendt?
Hannah Arendt foi uma judia alemã, que viveu no século passado (1906-1975), exactamente na altura em que Hitler e Estaline emergiram como líderes totalitaristas. O pensamento original e independente de Arendt contribuiu para a compreensão de como estes processos estudados na psicologia social podem ocorrer e ter impactos tão dramáticos na existência humana. A sua filosofia existencialista não caiu na facilidade de incidir apenas no “sujeito pensante”, mas sobretudo nas acções, percepções, sentimentos e vivências do “ser humano completo”.
Das suas notáveis obras destaco para o presente assunto “As origens do totalitarismo”, publicado em 1951, onde discute o paralelismo das ideologias totalitárias do Bolchevismo e do Nazismo. Nesta análise, Hannah Arendt apresenta uma explicação da sociedade e também da vida individual, mostrando como a via totalitária depende da “banalização do mal”, da manipulação das massas, da ausência de crítica face à mensagem dos líderes. Os líderes totalitaristas aparentemente com teorizações sociais tão distintas como de extrema-esquerda (Estaline) e de extrema-direita (Hitler) seguem, segundo Arendt, as mesmas vias e alcançam o poder por explorarem susceptibilidades particulares das massas.
Será que a teoria da liderança totalitarista de Arendt pode ajudar a perceber a liderança em organizações desportivas?
Comparar o Nazismo ou o Bolchevismo que provêm de uma escala mundial a uma dimensão local como o funcionamento de uma organização desportiva é claramente abusivo. Não é o que pretendo fazer. Proponho somente reflectir sobre liderança, cujos processos psicossociais são relativamente independentes da escala. Além disso, estou ciente que nenhuma liderança incorpora um “estilo puro”, mas recorre à interacção única entre as características do líder, as circunstâncias sociais em que a liderança é exercida, os aspectos particulares de cada plano estratégico e de acção, entre outros factores. Mesmo assim, reler Hannan Arendt pode ser estimulante.
Para Arendt, os líderes totalitários não são distinguíveis das massas. Eles são a personificação, a representação visível, a voz das massas. Porém, as massas susceptíveis ao totalitarismo têm características especiais. Ocorrem em sociedades onde há descrença no poder político, onde as classes sociais estão dissolvidas, onde a responsabilidade social dos cidadãos está diminuída e está generalizada a indiferença.
Os líderes totalitaristas surgem das sombras da sociedade, emergem do anonimato, de dentro das massas, e aparecem como aqueles que podem impedir a catástrofe do “não se fazer nada”. Apresentam-se como prontos para se sacrificar para o bem comum que é a organização, ao mesmo tempo que tratam com distinção as massas que representam. Assumem uma ambição global, muito para além dos limites da organização. Mais do que um posto, ambicionam criar um movimento e gerar influência social. Para isso, cultivam a instabilidade, pois a estabilidade não traz a força-motriz necessária ao movimento.
Os seus associados seguem-no, não porque o achem infalível, mas porque são convencidos que quem lidera essa organização tem os meios para se tornar infalível.
Como são os líderes totalitaristas?
Estes líderes têm uma comunicação interpessoal muito eficaz, causando um certo fascínio junto dos que o rodeiam. Mas esta fascinação não advém de nenhuma qualidade cativante, “quase mágica”, capaz de retirar o discernimento dos que o ouvem (sendo, portanto, distintos dos líderes carismáticos). A fascinação ocorre devido às propensões sociais da audiência para quem ele se dirige. Para estas massas o líder é directo e claro. O discurso é peremptório e reduz a incerteza de pessoas que querem ter certezas.
Outra característica é a sua extraordinária autoconfiança, que inspira os outros a terem confiança nele. Também a sagacidade que insinuam ter, cria convicções nos ouvintes de que se é sagaz.
São líderes que vão desenvolvendo uma lógica quase ficcional ou distorcida quanto ao que vão atingir ou ao que explica o estado das coisas. Mas essa lógica é apoiada pelas massas. É este dogmatismo ficcional coerente que legitima o líder: as massas são cativadas pelo discurso e envolvem-se no processo. E quanto mais se envolvem, mais se tornam cúmplices do discurso e actuam de forma a legitimá-lo.
Um importante aspecto do líder totalitarista, referido por Arendt, e que contrasta com o líder carismático, é ter a sua credibilidade muito mais assente na organização que lidera do que nas suas características pessoais. E isso reforça ainda mais a proximidade com aqueles que o elegeram.
E como se explica que figuras ilustres se mantenham no processo?
O líder totalitarista não aparece como totalitarista. Inicia a sua ascensão com base na sua habilidade de negociação, nas alianças variadas, na divisão entre os membros. É depois de consolidada a liderança que emerge uma acção centrada no exercício de poder.
Nesta segunda fase o líder sustenta o seu poder pela convicção junto dos seus membros de que sem ele tudo ficará perdido. A partir desse estádio, segundo a análise de Arendt, o líder impõe-se como necessário muito mais pela função que pela pessoa que é. O seu afastamento colocaria em causa todo o estado das coisas. É nesta fase de liderança consolidada que o discurso dogmático tende a atingir maiores proporções quer por parte do líder como dos liderados.
Por um lado, porque o líder totalitarista percebe que a realidade pode ser fabricada para ir ao encontro das suas previsões. Por outro lado, os observadores que estão fora desse domínio totalitário reduzem as defesas e o estado de alerta, por percepcionarem o seu discurso como demagógico e até algo inofensivo, tal a distorção da realidade.
No intuito de ampliar o poder e a força do movimento o líder totalitarista investe na identificação de inimigos. E, perante as massas, justifica a inequívoca necessidade daqueles serem derrotados, ainda que a custo da própria lei vigente. E assim acentua-se a fabricação da realidade que interessa ao totalitarismo.
E o controlo das claques?
É neste exercício de poder que se impõe uma força interventiva, que por analogia poderá ser a claque. Este grupo funciona como uma força que nunca questiona o líder, que é quem lhes permite o acesso a recursos vários, patrocina as suas mobilizações e legitima o seu funcionamento e existência. Neste sentido, reforçam a acção do líder, cientes que estão de não conseguirem sobreviver à queda do eleito.
A intrincada ligação entre massas, membros, forças interventivas e líder não exclui o “culto à personalidade” organizacional. Este culto narcísico dificulta o afastamento da organização, mesmo em situações limite. Mas esta foi a análise de Hannah Arendt sobre a liderança totalitarista de Adolf Hitler e Josef Estaline. Qualquer semelhança com Bruno de Carvalho será provavelmente coincidência."

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