"Se não tivesse vivido escondido dos nazis num sótão, não teria sido o que foi; FC Porto descobriu-o, Benfica levou-o
1. Quando ele nasceu, em Janeiro de 1899, o pai trabalhava numa fábrica de candeeiros - mas não tardou que se tornasse professor de dança. A ensinar dança, na escola que abrira, ficou a mãe também - e ele e o irmão mais velho não deixaram de ser seus alunos. (Difícil era a vida, vezes o fio lembrou-o: «Quando jovem, saía à rua quase sempre da mesma forma: de bolsos vazios e de barriga esfomeada»).
2. Eram judeus em Budapeste - e Armin, irmão mais velho, jogava futebol. Ao acabar de fazer 16 anos, levou-o para o Torekvés, pequeno clube de Kobánya, o bairro onde a família vivia. Judeus de Budapeste fundaram o MTK, para lá o chamaram. (Em 1921 tornou-se campeão húngaro - por sua causa o MTK quase perdeu o título: no arranque da época, ele fizera, fugaz, um jogo pelo Pécsi na II Divisão, era ilegal, a federação aceitou, porém, que o caso se sanasse com um público pedido de desculpas dele, o médio que cada vez mais encantava a Hungria)
3. Para disputar os Jogos Olímpicos de Budapeste para Paris viajou a selecção de escantilhão, em carruagens de terceira classe, com os jogadores em bancos de pau (e os dirigentes não). Pior aconteceu à chegada: hospedaram-nos numa esconsa e barulhenta pensão - com os quartos infestados de ratos. Furioso, tornou-se líder de uma rebelião que começou com ele a pendurar ratos mortos nas portas dos quartos dos dirigentes em protesto pela «falta de condições» (e a Hungria, depois de 5-0 à Polónia, acabou eliminada pelo Egipto - com os jogadores acusados de perderem de propósito, por amuo e birra...)
4. O que fizera em Paris, deixou-o marcado em Budapeste - e o ser judeu ainda mais: para fugir ao 'Terror Branco' foi para Viena jogar pelo Hakoah, clube sionista que era mais do que clube desportivo. Numa digressão aos Estados Unidos - deslumbraram-se com ele, por lá ficou, profissional.
5. Foi futebolista e professor de dança - e mais: sócio dum speakeasy, de um dos clubes clandestinos que vendiam bebidas alcoólicos por Nova Iorque durante a Lei Seca. Notável jogador de cartas e casino - ele próprio e desvelou: «Sim, enriqueci na América. Quando, na Sexta Feira Negra de 1929, a bolsa rebentou, eu perdi mais de 55 mil dólares - e fiquei pobre como Job. Cheguei a vazar os olhos do Lincoln na minha última nota de cinco dólares para ele não conseguir dar com o caminho da porta. Por isso, tive de voltar a ganhar dinheiro no futebol...»
6. Lançou-se, entretanto, a aventura perigosa: aceitou o desafio que Lipot Aschner, industrial que era judeu como ele, lhe fez para treinador do Ujpest (quando a Hungria já estava sob ameaça nazi) - e ganhou a Taça Mitropa de 1939, mais importante competição na Europa. A festejar a façanha, abrupto, chegou-lhe o abalo: por via da 'lei anti-judicial' que governo lançara (a exemplo de Hitler) foi despedido do Ujpest. Através de um artifício, deram-lhe (em segredo) cargo de olheiro - o problema era pagarem-lhe «ordenado de miséria».
7. Para fugir ao Holocausto, chegou a viver escondido no sótão do salão de cabeleiro do irmão da namorada (que não era judia...) - e com a Guerra a correr para o fim ainda o atiraram para um campo de trabalhos forçados à beira de Budapeste, de lá conseguiu fugir, rocambolesco.
8. Salvando-se de Auschwitz - o Vasas chamou-o a seu treinador. Face à escassez de alimentos, pediu que metade do salário fosse em batatas, farinha, banha, açúcar, carne, peixe, frutas e vegetais. Pouco lá esteve - porque o clube judeu de Bucareste, o Ciocanul, lhe acenou com 700 dólares - e de lá que se lançou à eternidade.
9. Em glória, o FC Porto foi buscá-lo ao São Paulo por 1958 - e fez o que se tornara tradição nele: foi campeão. Recebia 200 contos por ano - e logo o Benfica lhe lançou canto da sereia. Ao escutá-lo, exigiu o dobro de ordenado e mais: 150 contos pelo campeonato e 50 pela Taça. A isso lhe disseram que sim - e querendo colocar 200 contos pela Taça dos Clubes Campeões na tabela dos prémios, director, divertido com a «bizarra hipótese», desafiou-o: «Oh, homem, não ponha 200, ponha mais 100, caramba!» Ele pôs - e foi mesmo 300 contos que recebeu. (300 contos seriam hoje cerca de 110 mil euros - e os principais jogadores do Benfica tinham de salário 4 contos ao mês. E não: na Luz, não ganhou uma Taça dos Campeões apenas - ganhou duas...)"
António Simões, in A Bola
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