"Em Julho de 2014, na ressaca da mais humilhante das derrotas da selecção brasileira, frente à Alemanha por 7-1 nas meias-finais do Mundial, a imprensa acreditava que a CBF escolhesse o gaúcho Tite como novo técnico. Mas não: optou pelo gaúcho Dunga. Interrompia-se assim o ciclo do gaúcho Luiz Felipe Scolari, que sucedera ao gaúcho Mano Menezes, que por sua vez em 2010 tomara o comando canarinho da mão de Dunga, um gaúcho, já se sabe. Caiu Dunga, pela segunda vez, entretanto, e foi então contratado, finalmente, Tite, que como já dissemos é gaúcho, para os ciclos Rússia-2014 e Qatar-2018.
De 2006 até 2022, são 16 anos seguidos de gaúchos no banco da selecção, nascidos em Caxias do Sul (Tite), Ijuí (Dunga), Passo Fundo (Felipão) e Passo do Sobrado (Mano), localidades num raio de 250 quilómetros no Rio Grande do Sul, estado mais meridional do Brasil.
“O que é que a baiana tem?”, escreveu Dorival Caymmi, em 1939, para a voz da luso-brasileira Carmen Miranda. E no futebol, o que é que o gaúcho tem? Como é que uma região que representa um 20º da população do país e um 30º do seu tamanho domina o banco da selecção?
A teoria “naquele momento, naquele lugar” é antiga e ecléctica. Na literatura, conviveram na mesma Paris – na sala de estar da casa de Gertrude Stein, mais precisamente - Ernest Hemingway, Francis Scott Fitzgerald ou Ezra Pound, a nata da génération perdue.
Num prédio acanhado de Hell’s Kitchen, no lado oeste de Manhattan, Lee Strasberg ensinou o método Stanislavski, nalguns casos na mesma sala de aula, a Anne Bancroft, Dustin Hoffman, Marlon Brando, Montgomery Clift, James Dean, Marilyn Monroe, Paul Newman, Ellen Burstyn, Al Pacino, Geraldine Page ou Eli Wallach.
No prefácio ao livro de 2012 de Sandro Modeo Il Barça: tutti i segreti della squadra più forte del mondo, o jornalista Paolo Condó recordou ainda que graças ao médico Franco Basaglia a sua cidade natal, Trieste, se tornou a meca da psiquiatria mundial, isto a propósito de Barcelona, à época daquela obra o destino de todos os repórteres free lance europeus, atraídos pela presença “naquele momento, naquele lugar” de Guardiola, Messi, Xavi, Iniesta e de outros “revolucionários”.
O Silicon Valley é um exemplo contemporâneo da teoria, assim como a Escola de Sagres, nos idos séculos XIV e XV.
Mas como é de futebol que falamos, as escolas de treinadores, da húngara à holandesa, passando pela catalã, pela argentina e até pela portuguesa, são casos de estudo cada uma no seu tempo. Por sua vez, no livro Franz. Jürgen. Pep, de 2016, os autores procuram obstinadamente a origem do domínio alemão, tão expressivo nos últimos anos, e também encontraram um lugar, geograficamente demarcado.
Concluíram que, da mesma maneira que se fala na Escola de Frankfurt, como berço de teorias sociológicas, no futebol se poderia falar na Escola de Stuttgart, como berço do futebol moderno, ou não fossem Klinsmann, Löw, Klopp e o teórico preferido de todos eles, Ralf Rangnick, naturais de povoados em redor da capital de Baden-Württemberg.
A Escola de Estugarda derreteu a, chamemos-lhe assim, Escola Gaúcha, naquele tal Julho de 2014, quando a Alemanha de Löw goleou o Brasil de Scolari, mas ainda assim a aposta brasileira pós-Felipão foi noutro gaúcho, Dunga, e ainda em mais um, Tite.
Porquê? E há algum pólo de atracção no Rio Grande do Sul, como Gertrude ou Strasberg?
Tite fala em duas correntes dentro da própria escola gaúcha: uma representada por Carlos Fröner, um militar tricampeão pelo Grêmio nos anos 60 e também seleccionador com um futebol que privilegiava a defesa, a marcação, a rigidez e a disciplina e da qual, diz ele, Scolari é seguidor; e outra por Ênio Andrade, campeão nos anos 70 pelo Internacional com um futebol organizado mas vistoso, em que ele se revê.
Mas Paulo Roberto Falcão, que também chegou à selecção como treinador e era a estrela daquele Inter de Andrade, discorda. “Mesmo ele privilegiava a defesa”. E Oswaldo Brandão, treinador que conseguiu a proeza de ser ídolo de Palmeiras e Corinthians e foi o primeiro gaúcho a orientar a selecção, em 1955, de tão severo chegava, consta, a bater nos jogadores de cinto.
“Somos competitivos, guerreiros, ‘copeiros’ [ndr: treinadores com vocação para competições a eliminar] e mais europeízados”, explicou um dia Argel, antigo defesa de FC Porto e Benfica, nascido no Rio Grande do Sul. “É cultural, tivemos muitas guerras por aqui, isso formou gente com capacidade para enfrentar batalhas, para comandar, também os jogadores e os árbitros gaúchos têm boa fama”.
O estado mais a sul do Brasil, de facto, outrora disputado pelos reinos de Portugal e Espanha, local de destino de milhares de imigrantes açorianos, italianos e alemães, passou o século XIX em guerras – Guerra dos Farrapos, Guerra do Paraguai, entre outras – contadas, com primor, nos livros de Érico Veríssimo, um dos mais reputados escritores brasileiros do século XX e gaúcho até à alma.
“Criam equipas competitivas, sem dúvida”, disse o jornalista Maurício Savarese, correspondente no Brasil da revista 4x4x2 e paulistano de nascimento. “Mas o excesso de mentalidade gaúcha tornou o futebol brasileiro um tédio desde os anos 90”.
Até ao Qatar 2022, a Tite compete fazer o Brasil ganhar outra vez e defender a honra da escola."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!