"Quando alguma coisa corre mal, o romântico saca sempre da sua explicação preferida: “falta-nos um dez”. O lateral não sobe? Falta-nos um dez. O lateral sobe mas não sabe cruzar? Falta-nos um dez.
Os românticos da bola têm as suas obsessões às quais regressam mesmo quando não querem, por isso são obsessões e não outras formas mais serenas de admiração. De todas elas, nenhuma é tão compulsiva como a do número 10. Para estes românticos (vá, para os que acumulem romantismo com benfiquismo), o futebol morreu há dez anos, no dia em que Rui Costa pendurou as chuteiras e desapareceu nos gabinetes da SAD. Quando alguma coisa corre mal, no clube ou na selecção, o romântico saca sempre da sua explicação preferida: “falta-nos um dez”. O lateral não sobe? Falta-nos um dez. O lateral sobe mas não sabe cruzar? Falta-nos um dez. O ponta-de-lança tem dois tijolos em vez de pés? Falta-nos um dez. Falta-nos um seis? Falta-nos um dez.
E que dez é esse? Pelé? Maradona? Platini? Roberto Baggio? Enzo Francescoli? Zico? Zinedine Zidane? Ronaldinho Gaúcho? Valdo Cândido Filho? Deco? Talvez o Pelé de 1970, naquele estilo mais lento, pré-Cosmos. Talvez o Zidane de 2006, a puxar todos os cordelinhos do jogo, mestre-titereiro incomparável. Sim, e sempre com as feições vagas de um Rui Costa. Eu, que também sou desses românticos, é assim que o imagino no meu ideal platónico, arquetípico: um príncipe rodeado de operários, um aristocrata entre bárbaros. A analogia é inigualitária, bem sei, mas a distribuição do talento também o é, e contra isso de pouco valem os protestos. A única maneira de gerar mais igualdade é pôr os príncipes a carregar o piano. Só não se espere que eles, depois do esforço, toquem como Glenn Gould.
No futebol europeu é isso que tem acontecido. Já nenhuma equipa com ambições sérias se pode dar ao luxo de ter um número dez como os românticos o imaginam. Hoje, o dez tem de partir pedra e tocar bombo como os outros. Depois, se tiver tempo e forças, pede-se-lhe magia. E ele oferece magia suada, magia como se fosse mais uma tarefa, magia cansada. Os “dez” continuam por aí, às vezes disfarçados de “oito”, às vezes descaídos para a ala, às vezes como segundos pontas-de-lança. A fechar espaços, a pressionar, obrigatoriamente solidários.
Modric e Coutinho, Banega e Isco, Herrera, Bernardo Silva e Bruno Fernandes são todos “dez” destacados para outras áreas menos nobres, inclusivamente o banco. Mas nenhuma seleção tem dois “dez” que se aproximem tanto do “dez” ideal como a Colômbia. Enquanto os românticos e nostálgicos se queixam da falta de “dez”, a Colômbia tem-no em duplicado, um dez e um vinte. James e Quintero são a luz a brilhar no exterior da caverna. Agradeça-se a Pekerman não ter optado pela solução fácil de sacrificar um dos dois após o primeiro jogo. Coçou a cabeça e arranjou maneira de os conciliar em campo. Ontem, porém, a lesão de James Rodríguez voltou a deixá-lo de fora. Ficou ele a sofrer nas bancadas e a equipa a sofrer em campo. Há várias diferenças entre James e Quintero. O jogador do Bayern não só tem mais golo como o seu estilo é mais dominador: a equipa parece-se sempre com ele. Contra a Inglaterra, Quintero mostrou que não é capaz de fazer o mesmo. O jogo desenvolveu-se à margem dele, afastando-se das avenidas que um “dez” sempre consegue abrir, encurralando-se em brigas de becos, em rixas de rua.
Talvez o problema de Quintero tenha sido mais de autoridade do que de intensidade, embora esta última o vá perseguir para sempre, como a muitos “dez” que dão a impressão de correr menos do que deviam. A Quintero apontam-se-lhe dois pecados para não ter triunfado na Europa: a falta de compromisso defensivo e o excesso de peso. São duas faces da mesma moeda. Não defende porque é gordo, é gordo porque não corre. É verdade que o jogo de Quintero se define pelo que faz com a bola e não pelo que corre sem ela, mas ele próprio tratou de rebater a acusação: “Não sou gordo, sou ‘nalgón’”, expressão que não só dispensa tradução como recomenda que se mantenha assim no original. Pois bem, com um “dez” esguio, principesco, e um vinte “nalgón”, mais para Sancho do que para Cavaleiro da Triste Figura, a Colômbia era o último reduto, o reduto possível, dos românticos, dos quixotescos, dos que ainda sonham com um “dez” perfeito que, como os gigantes que o outro via, já só existe na imaginação. A Colômbia caiu. Viva a Colômbia!"
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